« […] Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.
Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera. […] » - pp. 68-71
Albert Camus, Cartas a um Amigo Alemão, Carta Terceira (Abril de 1944), Livros do Brasil, Lisboa – pp. 68-71.
CADERNOS DE CAMUS
Textos a partir dos textos de Camus
13/03/2004
01/03/2004
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 10
Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessámos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no «desconforto».
Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.
Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.
Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?
Ana Alves - Informação bibliográfica
Encontrei, da Alianza Editorial, editado em 2002, o livro Camus – Crónicas (1944-1953), e ao consultar o site da editora em http://www.alianzaeditorial.es/ verifiquei que têm publicados os cadernos I e II.
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 9
O verdadeiro deboche é libertador porque não cria nenhuma obrigação. No deboche, só nos possuímos a nós mesmos; ele fica sendo, pois, a ocupação preferida dos grandes apaixonados da sua própria pessoa.
A indiferença, que ocupava já tanto espaço dentro de mim, deixava de encontrar resistência e alastrava a sua esclerose. Nada de emoções! Um humor igual, ou antes, humor nenhum.
Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-me e reconhecer a minha culpabilidade. Era preciso viver no «desconforto». É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável! Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
Há sempre razões para matar um homem. Pelo contrário, é impossível justificar-se que ele viva. Aí está porque o crime encontra sempre advogados e a inocência por vezes apenas.
A indiferença, que ocupava já tanto espaço dentro de mim, deixava de encontrar resistência e alastrava a sua esclerose. Nada de emoções! Um humor igual, ou antes, humor nenhum.
Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-me e reconhecer a minha culpabilidade. Era preciso viver no «desconforto». É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável! Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
Há sempre razões para matar um homem. Pelo contrário, é impossível justificar-se que ele viva. Aí está porque o crime encontra sempre advogados e a inocência por vezes apenas.
10/02/2004
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 6
Estes são os últimos sublinhados do Caderno nº5. Neste conjunto de excertos acrescentei um único texto não sublinhado da minha leitura de juventude. È o texto “Verdade deste século: …” que encerra o Caderno n.º5 que, no seu conjunto, corresponde aos apontamentos de Camus no período que decorre de Setembro de 1945 a Abril de 1948.
““O que existe na Rússia é uma liberdade colectiva “total” e não pessoal. Mas que é uma liberdade total? É-se livre de alguma coisa – em relação a. Visivelmente, o limite é a liberdade em relação a Deus. Vê-se então claramente que essa liberdade significa a sujeição ao homem.””
“Peça Dora: Se tu não amas ninguém, isso não pode vir a acabar bem.”
(Mais uma vez a peça “Os Justos”, assim como nalguns excertos que surgirão a seguir.)
““Quantos eram os membros da “Vontade do povo”? 500. E o Império Russo? Mais de cem milhões.””
(Sublinhei somente “500”)
“” Vera Figner: “Eu devia viver, viver para ser julgada, pois o processo coroa a actividade do revolucionário.””
““Peça. Dora ou outra: “Condenados, condenados a serem heróis e santos. Heróis à força. Por isso não nos interessa, compreendem, não nos interessam nada os sórdidos negócios deste mundo envenenado e estúpido que se pega a nós como visco. – Confessai, confessai-o, que o que vos interessa são os seres e o seu rosto... E que, pretendendo procurar uma verdade, não esperais no fim de contas senão amor.””
“É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.”
“Formas e revolta. Dar uma forma aquilo que é informe, é o fim de toda a obra. Não há apenas criação, mas correcção (ver mais acima). Daí a importância da forma. Daí a necessidade de um estilo para cada assunto, não de todo diferente porque a língua do autor é sempre sua. E é justamente esta que fará quebrar não a unidade deste ou daquele livro mas a da obra inteira.”
“Retirei-me do mundo não porque tivesse inimigos, mas porque tinha amigos. Não que eles não me fossem prestáveis como é habitual, mas julgavam-me melhor do que sou. É uma mentira que eu não posso suportar”
“Para os cristãos, a Revelação está no início da história. Para os marxistas, está no fim. Duas religiões.”
(Coloquei? no fim da frase)
“Pequena baía antes de Tenés, na base de uma cadeia de montanhas. Semicírculo perfeito. Ao cair da noite uma plenitude angustiada plana sobre as águas silenciosas. Compreende-se então porque é que os Gregos formaram a ideia do desespero e da tragédia sempre através da beleza e do que nela há de opressivo. É uma tragédia que culmina. Ao passo que o espírito moderno produz o seu desespero a partir da fealdade e do medíocre.
É o que Char quer dizer talvez. Para os Gregos, a beleza é o ponto de partida. Para um europeu, é um fim, raramente atingido. Não sou moderno.”
“Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos. Acabar com tudo o mais e dizer o que tenho de mais profundo.”
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
““O que existe na Rússia é uma liberdade colectiva “total” e não pessoal. Mas que é uma liberdade total? É-se livre de alguma coisa – em relação a. Visivelmente, o limite é a liberdade em relação a Deus. Vê-se então claramente que essa liberdade significa a sujeição ao homem.””
“Peça Dora: Se tu não amas ninguém, isso não pode vir a acabar bem.”
(Mais uma vez a peça “Os Justos”, assim como nalguns excertos que surgirão a seguir.)
““Quantos eram os membros da “Vontade do povo”? 500. E o Império Russo? Mais de cem milhões.””
(Sublinhei somente “500”)
“” Vera Figner: “Eu devia viver, viver para ser julgada, pois o processo coroa a actividade do revolucionário.””
““Peça. Dora ou outra: “Condenados, condenados a serem heróis e santos. Heróis à força. Por isso não nos interessa, compreendem, não nos interessam nada os sórdidos negócios deste mundo envenenado e estúpido que se pega a nós como visco. – Confessai, confessai-o, que o que vos interessa são os seres e o seu rosto... E que, pretendendo procurar uma verdade, não esperais no fim de contas senão amor.””
“É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.”
“Formas e revolta. Dar uma forma aquilo que é informe, é o fim de toda a obra. Não há apenas criação, mas correcção (ver mais acima). Daí a importância da forma. Daí a necessidade de um estilo para cada assunto, não de todo diferente porque a língua do autor é sempre sua. E é justamente esta que fará quebrar não a unidade deste ou daquele livro mas a da obra inteira.”
“Retirei-me do mundo não porque tivesse inimigos, mas porque tinha amigos. Não que eles não me fossem prestáveis como é habitual, mas julgavam-me melhor do que sou. É uma mentira que eu não posso suportar”
“Para os cristãos, a Revelação está no início da história. Para os marxistas, está no fim. Duas religiões.”
(Coloquei? no fim da frase)
“Pequena baía antes de Tenés, na base de uma cadeia de montanhas. Semicírculo perfeito. Ao cair da noite uma plenitude angustiada plana sobre as águas silenciosas. Compreende-se então porque é que os Gregos formaram a ideia do desespero e da tragédia sempre através da beleza e do que nela há de opressivo. É uma tragédia que culmina. Ao passo que o espírito moderno produz o seu desespero a partir da fealdade e do medíocre.
É o que Char quer dizer talvez. Para os Gregos, a beleza é o ponto de partida. Para um europeu, é um fim, raramente atingido. Não sou moderno.”
“Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos. Acabar com tudo o mais e dizer o que tenho de mais profundo.”
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
08/02/2004
ARTIGO DO NEW YORK TIMES sobre Camus e os "neo-conservadores"
EDWARD ROTHSTEIN - Connections: Camus and the Neo-Cons: More in Common Than They Might Suspect
February 7, 2004
It was a heady moment. Liberation was at hand. The world's
most powerful totalitarian state had been defeated.
World-historical struggles had come to an end.
Such was the situation after the Soviet Union collapsed.
And the sense of triumph was palpable. In an essay
reprinted in "The Norman Podhoretz Reader" (Free Press),
Mr. Podhoretz wrote a "Eulogy" for neo-conservatism - the
political and cultural movement with which he and the
magazine he edited, Commentary, had been so closely
identified. It was a eulogy that proclaimed satisfaction
and closure. For two decades, Commentary had advocated
unrelenting challenges to Soviet power, and while the
downfall had never been seen as imminent, it had always
been hoped for.
In his introduction to this new collection - which samples
Mr. Podhoretz's argumentative power and rhetorical range
over nearly 50 years - Paul Johnson notes that the Soviet
collapse also brought to its end an era in American
intellectual life in which Mr. Podhoretz had been a major
player.
But as central as Soviet Communism was to
neo-conservativism, the eulogy, of course, was premature.
History did not come to end. Free-market economies ran into
trouble. Genocidal massacres took place. Terrorism erupted.
Old conflicts were metastasizing, emerging in new
configurations. So neo-conservativism continues, now even
taking center stage, named as the ideology behind President
Bush's foreign policy.
In neo-conservatism's continued evolution, though, how are
lessons learned from the past to be applied to a
transformed world? An example from the past may show how
vexed such questions can be.
Consider the period just after the Second World War, when
another tyranny had just collapsed. It seemed as if the
Allies had, through their trials, learned something about
totalitarianism and democracy. Could those concepts be used
to understand the Soviet Union, the West's erstwhile
partner? Was it something very different (a humanitarian
revolutionary state gone awry) or something very similar (a
fascistic state beyond saving)?
Such issues affected the impassioned arguments between the
two most important writers in postwar France, Albert Camus
and Jean-Paul Sartre. In his new book, "Camus and Sartre:
The Story of a Friendship and the Quarrel That Ended It"
(University of Chicago), Ronald Aronson, who teaches at
Wayne State University, traces the nuances of their
friendship, their mutual influences and hostilities, and
the themes that still haunt contemporary debates.
Their schism over Communism was not academic. At the time
of France's liberation, buoyed by its Resistance role, the
Communist Party had 400,000 members; that figure almost
doubled by 1946, and the party joined a coalition
government. In addition, according to Mr. Aronson, the
party dominated the largest trade union, published dozens
of newspapers including the country's two largest, and had
a payroll of more than 14,000. The Communist Party was part
of the mainstream in a way it never was in the United
States.
But its allegiances were just as open to question: it
slavishly followed Soviet leadership; fellow travelers
idealized the Soviet Union, despite readily available
accounts of horrors. Andri Gide, who visited Russia in the
1930's, said he doubted whether anywhere, even in Hitler's
Germany, the "mind and spirit are less free, more bowed
down."
Camus had joined the party in Algeria in 1935 and left two
years later in dismay. Mr. Aronson even implies that Camus'
views on absurdity and freedom grew out of that experience.
Then, in France, during the German occupation, Camus did
heroic work as editor of a Resistance newspaper, Combat.
Sartre, in their developing friendship, called Camus an
"outstanding example" of a life lived in "engagement."
After the war, both men saw an opportunity to remake the
world, redressing social ills. Both also wanted to steer
the French left away from the Communists while distancing
themselves from the growing cold war.
But by 1948, Sartre had become a fellow traveler, even
giving the party the right to censor one of his plays. He
called freedom under capitalism a "hoax" and France a
"society of oppression." He refused to denounce Soviet
labor camps or the show trials. And he justified
revolutionary violence, praising the African revolutionary
Franz Fanon.
Meanwhile, Camus found himself ever more repulsed by
Communism, which he called "the modern madness." He saw
Communism as a desperate attempt to create meaning and
certainty. He wrote, "Those who pretend to know everything
and settle everything finish by killing everything." If
there were a choice between justice and freedom, meaning a
choice between the ideal Communist state and the flawed
Western state, he wrote: "I choose freedom. For even if
justice is not realized, freedom maintains the power of
protest against injustice and keeps communication open."
After Sartre's journal, Les Temps Modernes, panned Camus's
influential counter-revolutionary book "The Rebel" in 1952,
the friends never spoke again. Sartre's influence was so
strong that Camus' French reputation was not repaired even
after winning the Nobel Prize in 1957.
But Mr. Aronson does not want the reader taking sides. He
insists that we have to "free ourselves from the dualistic
thinking of the cold war," and not take the "currently
fashionable" view praising Camus. Mr. Aronson argues, in
fact, that "like many another anti-Communist, Camus wrecked
his own moral and political coherence by avoiding talking
about his own society" while Sartre correctly "confronted
the violence of the democratic capitalist system" and the
evils of colonialism. But in this, Mr. Aronson is simply
taking Sartre's side without attending to its minefields.
Camus, in his concreteness and human sensitivities, is more
perceptive, and in his compassion, more trustworthy. He had
a major influence on later French writers like Andri
Glucksmann, Bernard-Henri Livy and Pascal Bruckner - the
neo-cons of the French left. And in Camus's rejection of
utopianism and his acceptance of sad compromise there
remain hints of what might form some sort of realistic
political ideal.
NOTA: artigo enviado por Leonel Vicente e cuja ligação original é esta.
February 7, 2004
It was a heady moment. Liberation was at hand. The world's
most powerful totalitarian state had been defeated.
World-historical struggles had come to an end.
Such was the situation after the Soviet Union collapsed.
And the sense of triumph was palpable. In an essay
reprinted in "The Norman Podhoretz Reader" (Free Press),
Mr. Podhoretz wrote a "Eulogy" for neo-conservatism - the
political and cultural movement with which he and the
magazine he edited, Commentary, had been so closely
identified. It was a eulogy that proclaimed satisfaction
and closure. For two decades, Commentary had advocated
unrelenting challenges to Soviet power, and while the
downfall had never been seen as imminent, it had always
been hoped for.
In his introduction to this new collection - which samples
Mr. Podhoretz's argumentative power and rhetorical range
over nearly 50 years - Paul Johnson notes that the Soviet
collapse also brought to its end an era in American
intellectual life in which Mr. Podhoretz had been a major
player.
But as central as Soviet Communism was to
neo-conservativism, the eulogy, of course, was premature.
History did not come to end. Free-market economies ran into
trouble. Genocidal massacres took place. Terrorism erupted.
Old conflicts were metastasizing, emerging in new
configurations. So neo-conservativism continues, now even
taking center stage, named as the ideology behind President
Bush's foreign policy.
In neo-conservatism's continued evolution, though, how are
lessons learned from the past to be applied to a
transformed world? An example from the past may show how
vexed such questions can be.
Consider the period just after the Second World War, when
another tyranny had just collapsed. It seemed as if the
Allies had, through their trials, learned something about
totalitarianism and democracy. Could those concepts be used
to understand the Soviet Union, the West's erstwhile
partner? Was it something very different (a humanitarian
revolutionary state gone awry) or something very similar (a
fascistic state beyond saving)?
Such issues affected the impassioned arguments between the
two most important writers in postwar France, Albert Camus
and Jean-Paul Sartre. In his new book, "Camus and Sartre:
The Story of a Friendship and the Quarrel That Ended It"
(University of Chicago), Ronald Aronson, who teaches at
Wayne State University, traces the nuances of their
friendship, their mutual influences and hostilities, and
the themes that still haunt contemporary debates.
Their schism over Communism was not academic. At the time
of France's liberation, buoyed by its Resistance role, the
Communist Party had 400,000 members; that figure almost
doubled by 1946, and the party joined a coalition
government. In addition, according to Mr. Aronson, the
party dominated the largest trade union, published dozens
of newspapers including the country's two largest, and had
a payroll of more than 14,000. The Communist Party was part
of the mainstream in a way it never was in the United
States.
But its allegiances were just as open to question: it
slavishly followed Soviet leadership; fellow travelers
idealized the Soviet Union, despite readily available
accounts of horrors. Andri Gide, who visited Russia in the
1930's, said he doubted whether anywhere, even in Hitler's
Germany, the "mind and spirit are less free, more bowed
down."
Camus had joined the party in Algeria in 1935 and left two
years later in dismay. Mr. Aronson even implies that Camus'
views on absurdity and freedom grew out of that experience.
Then, in France, during the German occupation, Camus did
heroic work as editor of a Resistance newspaper, Combat.
Sartre, in their developing friendship, called Camus an
"outstanding example" of a life lived in "engagement."
After the war, both men saw an opportunity to remake the
world, redressing social ills. Both also wanted to steer
the French left away from the Communists while distancing
themselves from the growing cold war.
But by 1948, Sartre had become a fellow traveler, even
giving the party the right to censor one of his plays. He
called freedom under capitalism a "hoax" and France a
"society of oppression." He refused to denounce Soviet
labor camps or the show trials. And he justified
revolutionary violence, praising the African revolutionary
Franz Fanon.
Meanwhile, Camus found himself ever more repulsed by
Communism, which he called "the modern madness." He saw
Communism as a desperate attempt to create meaning and
certainty. He wrote, "Those who pretend to know everything
and settle everything finish by killing everything." If
there were a choice between justice and freedom, meaning a
choice between the ideal Communist state and the flawed
Western state, he wrote: "I choose freedom. For even if
justice is not realized, freedom maintains the power of
protest against injustice and keeps communication open."
After Sartre's journal, Les Temps Modernes, panned Camus's
influential counter-revolutionary book "The Rebel" in 1952,
the friends never spoke again. Sartre's influence was so
strong that Camus' French reputation was not repaired even
after winning the Nobel Prize in 1957.
But Mr. Aronson does not want the reader taking sides. He
insists that we have to "free ourselves from the dualistic
thinking of the cold war," and not take the "currently
fashionable" view praising Camus. Mr. Aronson argues, in
fact, that "like many another anti-Communist, Camus wrecked
his own moral and political coherence by avoiding talking
about his own society" while Sartre correctly "confronted
the violence of the democratic capitalist system" and the
evils of colonialism. But in this, Mr. Aronson is simply
taking Sartre's side without attending to its minefields.
Camus, in his concreteness and human sensitivities, is more
perceptive, and in his compassion, more trustworthy. He had
a major influence on later French writers like Andri
Glucksmann, Bernard-Henri Livy and Pascal Bruckner - the
neo-cons of the French left. And in Camus's rejection of
utopianism and his acceptance of sad compromise there
remain hints of what might form some sort of realistic
political ideal.
NOTA: artigo enviado por Leonel Vicente e cuja ligação original é esta.
07/02/2004
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 8
(começar a ver; a nudez perante si)
Aquilo de que mais gosto no mundo é a Sicília, já pode ver, e ainda do cimo do Etna, em plena luz do dia, sob condição de dominar a ilha e o mar. Java também, mas na época dos alíseos. Sim, estive lá, em novo. De uma maneira geral gosto das ilhas. É mais fácil imperar aí.
Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.
Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.
Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.
(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome.
Avançava assim à superfície da vida, por palavras, de certo modo, nunca na realidade. Todos esses livros mal lidos, esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal possuídas! Eu fazia gestos por enfado ou por distracção. Os seres vinham logo atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles. Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo.
A verdade é que todo o homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.
Daria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bonita figurante. É verdade que, ao décimo encontro, eu suspiraria por Einstein ou por umas fortes leituras. Em suma, nunca me incomodei com os grandes problemas senão nos intervalos dos meus pequenos desregramentos.
O acto de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade aí pavoneia, ou então aí se revela a verdadeira generosidade.
Aquilo de que mais gosto no mundo é a Sicília, já pode ver, e ainda do cimo do Etna, em plena luz do dia, sob condição de dominar a ilha e o mar. Java também, mas na época dos alíseos. Sim, estive lá, em novo. De uma maneira geral gosto das ilhas. É mais fácil imperar aí.
Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.
Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.
Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.
(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome.
Avançava assim à superfície da vida, por palavras, de certo modo, nunca na realidade. Todos esses livros mal lidos, esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal possuídas! Eu fazia gestos por enfado ou por distracção. Os seres vinham logo atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles. Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo.
A verdade é que todo o homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.
Daria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bonita figurante. É verdade que, ao décimo encontro, eu suspiraria por Einstein ou por umas fortes leituras. Em suma, nunca me incomodei com os grandes problemas senão nos intervalos dos meus pequenos desregramentos.
O acto de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade aí pavoneia, ou então aí se revela a verdadeira generosidade.
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 7
(a noite do riso)
Ergui a cabeça e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, estalou um riso atrás de mim. Surpreendido, voltei-me bruscamente: não havia ninguém. Fui até ao parapeito: nenhum batelão, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso pelas minhas costas, um pouco mais distante, como se fosse a descer o rio. Fiquei ali, imóvel. O riso diminuía, mas eu ouvia-o ainda mais distintamente por detrás de mim, vindo de parte nenhuma, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, percebia que o meu coração batia precipitadamente. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso; era um riso bom, natural, quase amigável, que repunha as coisas no seu lugar. Em breve, aliás, deixei de o ouvir. Alcancei os cais, meti pela rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava aturdido, respirava a custo. Nessa noite, telefonei para um amigo que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi rir sob as minhas janelas. Abri. Efectivamente, no passeio, alguns jovens despediam-se alegremente. Fechei de novo as janelas, encolhendo os ombros; ao fim e ao cabo, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me à casa de banho para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que o meu sorriso era dúbio…
Ergui a cabeça e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, estalou um riso atrás de mim. Surpreendido, voltei-me bruscamente: não havia ninguém. Fui até ao parapeito: nenhum batelão, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso pelas minhas costas, um pouco mais distante, como se fosse a descer o rio. Fiquei ali, imóvel. O riso diminuía, mas eu ouvia-o ainda mais distintamente por detrás de mim, vindo de parte nenhuma, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, percebia que o meu coração batia precipitadamente. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso; era um riso bom, natural, quase amigável, que repunha as coisas no seu lugar. Em breve, aliás, deixei de o ouvir. Alcancei os cais, meti pela rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava aturdido, respirava a custo. Nessa noite, telefonei para um amigo que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi rir sob as minhas janelas. Abri. Efectivamente, no passeio, alguns jovens despediam-se alegremente. Fechei de novo as janelas, encolhendo os ombros; ao fim e ao cabo, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me à casa de banho para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que o meu sorriso era dúbio…
Ana Alves – Sobre os Justos
Albert Camus, Os Justos , Editora: Livros do Brasil
(Transcrito de O Citador )
Esta peça de teatro lê-se em algumas horas, quanto muito numa tarde. Nela, ao conceito metafísico de Justiça - com maiúscula -, Camus contrapõe, prefere e defende aquilo que António Quadros - tradutor e autor do prefácio na edição "Livros do Brasil" - designa por "ética do justo".
Sob o pretexto de um enredo simples - um grupo de revolucionários russos planeia um atentado à bomba contra a pessoa do grão-duque -, representa-se neste livro a luta entre os conceitos - abstractos, ideais, futuros, eventuais - que não raro se elevam, na sua inerente transcendência, muito acima da vida que deveriam servir, e os actos - isolados, mas concretos, operantes, presentes - que em si permitem uma maior proximidade entre a vida humana e os seus mais nobres valores.
Camus refuta a existência de uma Justiça e confronta-a com os justos -aqueles que, em cada acto, por mais simples, consideram antes de mais o respeito fundado no amor.
É assim que Yanek (Kaliayev), incumbido de lançar a primeira das várias bombas fatais, à passagem da carruagem do grão-duque, apercebendo-se que este se faz acompanhar de duas crianças, se sente incapaz de cumprir apalavra dada ao grupo.
E explica-o, desolado:
«Eu não sabia, não podia prever. Crianças, sobretudo crianças. Viste as crianças? Esse olhar sério que têm às vezes... Não fui capaz de as olhar a direito... E, no entanto, um minuto antes, no canto sombrio do pequeno largo, eu estava feliz. Juro-te, quando as lanternas da carruagem começaram a brilhar ao longe, senti o meu coração bater de alegria. Batia cada vez com mais força, à medida que o barulho das rodas da carruagem aumentava. E esse barulho estava dentro de mim. Tinha vontade de saltar. Creio mesmo queria. E dizia «sim, sim...». Compreendes?
Corri para ela. Foi nesse momento que os vi.[...]
Então, não sei o que se passou. Os meus braços enfraqueceram de repente. As pernas tremiam-me. Um instante depois, era tarde demais...[...]»
Inicia-se aqui a discussão, protagonizada por Yanek e Stepan - este, incapaz de compreender a hesitação do primeiro -, que é a alma da peça, e na qual surgem questões essenciais; dois exemplos:
- a luta pela Justiça fundamentará a prática de actos injustos, como o que resultaria da morte dos sobrinhos do grão-duque?
- a Justiça mede-se em termos quantitativos ou de natureza? - na ignóbil comparação de Stepan: «Porque Yanek não as matou [às duas crianças que acompanhavam o grão-duque], milhares de crianças russas morrerão de fome nos próximos anos.»
Stepan toma o partido do Elevado Conceito; Yanek defende os actos em si. Por fim, Yanek exprime aquilo que, possuindo um contexto claro na peça, se revela também, afinal, o resumo da própria filosofia de Camus (e aquilo que o fez desentender-se com Sartre, sendo que nesse momento somos levados a reler Stepan em busca do desenho desse filósofo):
«[...]amo os que vivem hoje na mesma terra que eu, e são esses que saúdo. É por eles que luto e é por eles que estou disposto a morrer. E por uma cidade longínqua, de que não tenho sequer a certeza, não irei contra os meus irmãos. Não aumentarei a injustiça viva em nome de uma justiça morta.»
Além da clareza da escrita, que atravessa a obra de Camus, o que seduz neste livro é a sua perfeita actualidade - o enredo, localizado na Rússia, serve de mero pretexto para um debate intemporal -, bem como a possibilidade de, a partir do dilema apresentado, se estender a crítica a todos os grandes conceitos e todos os pequenos actos e à frágil compatibilidade entre eles.
(Transcrito de O Citador )
Esta peça de teatro lê-se em algumas horas, quanto muito numa tarde. Nela, ao conceito metafísico de Justiça - com maiúscula -, Camus contrapõe, prefere e defende aquilo que António Quadros - tradutor e autor do prefácio na edição "Livros do Brasil" - designa por "ética do justo".
Sob o pretexto de um enredo simples - um grupo de revolucionários russos planeia um atentado à bomba contra a pessoa do grão-duque -, representa-se neste livro a luta entre os conceitos - abstractos, ideais, futuros, eventuais - que não raro se elevam, na sua inerente transcendência, muito acima da vida que deveriam servir, e os actos - isolados, mas concretos, operantes, presentes - que em si permitem uma maior proximidade entre a vida humana e os seus mais nobres valores.
Camus refuta a existência de uma Justiça e confronta-a com os justos -aqueles que, em cada acto, por mais simples, consideram antes de mais o respeito fundado no amor.
É assim que Yanek (Kaliayev), incumbido de lançar a primeira das várias bombas fatais, à passagem da carruagem do grão-duque, apercebendo-se que este se faz acompanhar de duas crianças, se sente incapaz de cumprir apalavra dada ao grupo.
E explica-o, desolado:
«Eu não sabia, não podia prever. Crianças, sobretudo crianças. Viste as crianças? Esse olhar sério que têm às vezes... Não fui capaz de as olhar a direito... E, no entanto, um minuto antes, no canto sombrio do pequeno largo, eu estava feliz. Juro-te, quando as lanternas da carruagem começaram a brilhar ao longe, senti o meu coração bater de alegria. Batia cada vez com mais força, à medida que o barulho das rodas da carruagem aumentava. E esse barulho estava dentro de mim. Tinha vontade de saltar. Creio mesmo queria. E dizia «sim, sim...». Compreendes?
Corri para ela. Foi nesse momento que os vi.[...]
Então, não sei o que se passou. Os meus braços enfraqueceram de repente. As pernas tremiam-me. Um instante depois, era tarde demais...[...]»
Inicia-se aqui a discussão, protagonizada por Yanek e Stepan - este, incapaz de compreender a hesitação do primeiro -, que é a alma da peça, e na qual surgem questões essenciais; dois exemplos:
- a luta pela Justiça fundamentará a prática de actos injustos, como o que resultaria da morte dos sobrinhos do grão-duque?
- a Justiça mede-se em termos quantitativos ou de natureza? - na ignóbil comparação de Stepan: «Porque Yanek não as matou [às duas crianças que acompanhavam o grão-duque], milhares de crianças russas morrerão de fome nos próximos anos.»
Stepan toma o partido do Elevado Conceito; Yanek defende os actos em si. Por fim, Yanek exprime aquilo que, possuindo um contexto claro na peça, se revela também, afinal, o resumo da própria filosofia de Camus (e aquilo que o fez desentender-se com Sartre, sendo que nesse momento somos levados a reler Stepan em busca do desenho desse filósofo):
«[...]amo os que vivem hoje na mesma terra que eu, e são esses que saúdo. É por eles que luto e é por eles que estou disposto a morrer. E por uma cidade longínqua, de que não tenho sequer a certeza, não irei contra os meus irmãos. Não aumentarei a injustiça viva em nome de uma justiça morta.»
Além da clareza da escrita, que atravessa a obra de Camus, o que seduz neste livro é a sua perfeita actualidade - o enredo, localizado na Rússia, serve de mero pretexto para um debate intemporal -, bem como a possibilidade de, a partir do dilema apresentado, se estender a crítica a todos os grandes conceitos e todos os pequenos actos e à frágil compatibilidade entre eles.
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 5
Nos meus sublinhados de juventude destes Cadernos omito, pela primeira vez, dois excertos de diálogos que viriam a integrar a futura peça de teatro Os Justos. A sua transcrição integral tornaria demasiadamente longa esta contribuição para o projecto Cadernos de Camus. Mantenho, no entanto, um excerto dos diálogos preparatórios dessa peça.
Esta série de excertos do Caderno nº 5 consta do volume Cadernos III, respeitante ao período Setembro de1945/Abril de 1948:
“Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.”
(Esta frase sublinhada faz parte de um texto longo, que não transcrevo na íntegra, no qual, à margem, escrevi à mão: “cuidado!”)
“Conheço-me bem de mais para crer na virtude completamente pura.”
“O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos: o conformismo.”
“O grande problema da vida é saber como viver entre os homens”
(Apresenta uma nota de pé de página onde se lê: “No manuscrito, encontra-se entre parênteses: A.F.”)
“X. “Sou um homem que não crê em nada e que não ama ninguém, pelo menos no âmago. Há em mim um vazio, um deserto horrível...”
“Marc condenado à morte na prisão de Loos. Recusa que lhe tirem os ferros durante a Semana Santa para se parecer mais com o seu salvador. Antigamente disparava contra os crucifixos que encontrava nas estradas.”
“Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.”
“Peça.
D. – O que há de triste, Yanek, é que tudo isso nos envelhece. Nunca mais, nunca mais seremos crianças. Podemos morrer desde este instante, já esgotámos o homem (o homicídio é o limite.)
- Não, Yanek, se a única solução é a morte, então não seguimos a boa vida. A boa vida é a que leva à vida.
- Tomámos sobre nós o mal do mundo, este orgulho há-de ser castigado.
- Passámos dos amores infantis a essa inicial e derradeira amante que é a morte. Andámos depressa de mais. Não somos homens.”
(Este excerto é o único que transcrevo daqueles que sublinhei dos textos preparatórios da peça de teatro Os Justos. Esta peça foi concluída, após uma viagem à América Latina, no Verão de 1949, estando Camus gravemente doente. Nela é abordada a questão, fundamental para Camus, da violência política cujo debate requer, em qualquer circunstância, um adequado enquadramento filosófico e histórico.)
“Miséria deste século. Ainda não há muito tempo eram as más acções que precisavam de ser justificadas, hoje são as boas.”
“A solidão perfeita. No urinol de uma grande estação à uma hora da manhã.”
(Contém uma nota de pé de página onde se escreve. “Esta observação foi acrescentada à mão sobre a primeira redacção à máquina”).
“Bayle: pensamentos diversos sobre o cometa.
“Não de deve julgar a vida de um homem nem pelas suas crenças nem pelo que publica nos livros.””
“Como fazer compreender que uma criança pobre pode ter vergonha sem ter inveja”
(Clara referência à infância pobre do próprio Camus.)
“Vigny (correspondência): “ A ordem social é sempre má: de tempos a tempos é apenas suportável. Para se ir do mau ao suportável, a disputa não vale uma gota de sangue” Não, o suportável merece, se não o sangue, pelo menos o esforço de uma vida inteira.
Misantropo em grupo, o individualista perdoa ao indivíduo.”
“Saint-Beuve: “Sempre pensei que se as pessoas dissessem o que pensam durante um minuto apenas a sociedade ruiria.”
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
David Leandro - Sobre um livro
Hélder Ribeiro, Do Absurdo à Solidariedade - a visão do mundo de Albert Camus, Editorial Estampa, Lx, 1996.
Foi o meu professor de filosofia, depois um amigo, que me mostrou a partir da convivência de um movimento de campos de férias - MOCAMFE - a viva vivida do absurdo à solidariedade. Morreu um outro dia. Mas ensinou-me para o resto da vida o "Solitário ou solidário?".
Onde está, não sei... mas acompanhará com todo o prazer de menino os cadernos do Camus e as nossas vidas solidárias.
Foi o meu professor de filosofia, depois um amigo, que me mostrou a partir da convivência de um movimento de campos de férias - MOCAMFE - a viva vivida do absurdo à solidariedade. Morreu um outro dia. Mas ensinou-me para o resto da vida o "Solitário ou solidário?".
Onde está, não sei... mas acompanhará com todo o prazer de menino os cadernos do Camus e as nossas vidas solidárias.
03/02/2004
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 6
(A Morte)
Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!
Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 5
Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente de Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de fazer frente.
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 4
Estes não são os derradeiros sublinhados no Caderno n.º5. O conjunto era demasiadamente longo e por essa razão dividi-o em duas partes. Como em anteriores excertos há casos de citações de citações. Tentei sempre ser o mais claro possível colocando-me do lado do leitor destas notas. Omito, nesta série de sublinhados, a transcrição de um excerto por ser demasiado extenso e apresentar uma configuração que não se enquadra neste formato. O Caderno n.º5, do volume Cadernos III (edição portuguesa), respeita ao período Setembro de1945/Abril de 1948:
“Palante diz com razão que se há uma verdade una e universal, a liberdade não tem razão de ser.”
“É como se fosse absolutamente necessário escolher entre o aviltamento e o castigo.”
“Mas ninguém é culpado absolutamente, não se pode pois condenar ninguém absolutamente I) aos olhos da sociedade 2) aos olhos do indivíduo.”
““Sócrates atingido por um pontapé. “Se um burro me tivesse batido iria porventura apresentar queixa?” (Diógenes Laércio, II, 2I)””
““Para Schopenhaurer: a existência objectiva das coisas, a sua “representação” é sempre agradável, ao passo que a existência subjectiva é sempre dor.
“Todas as coisas são belas à vista e terríveis no seu ser, donde a ilusão, tão corrente e que sempre me impressiona, da unidade exterior da vida dos outros.””
““Problema da transição. Deveria a Rússia passar pelo estádio da revolução burguesa e capitalista, como o exigia a lógica da história? Neste ponto só Tkatchev (com Netchaev e Bakunine) é o predecessor de Lénine. Marx e Engels eram mencheviques. Eles só tinham em vista a revolução burguesa futura.
As constantes discussões dos primeiros marxistas sobre a necessidade do desenvolvimento capitalista da Rússia e a sua tendência para acolherem esse desenvolvimento. Tikhomirov, velho membro do partido da vontade do povo, acusa-os de se fazerem “os paladinos das primeiras capitalizações.””
“Finalmente, á a vontade do proletariado que transforma o mundo. Há por conseguinte verdadeiramente no marxismo uma filosofia essencial que denuncia a mentira da objectivação e afirma o triunfo da actividade humana.”
“Em russo volia significa igualmente vontade e liberdade.”
“Lénine afirma a primazia do político sobre o económico (a despeito do marxismo).”
“Lucaks: O sentido revolucionário é o sentido da totalidade. Concepção do mundo total em que a teoria e a prática são identificadas.
Sentido religioso segundo Berdiaev.”
(Andava eu, certamente, a ler Lucaks)
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
“Palante diz com razão que se há uma verdade una e universal, a liberdade não tem razão de ser.”
“É como se fosse absolutamente necessário escolher entre o aviltamento e o castigo.”
“Mas ninguém é culpado absolutamente, não se pode pois condenar ninguém absolutamente I) aos olhos da sociedade 2) aos olhos do indivíduo.”
““Sócrates atingido por um pontapé. “Se um burro me tivesse batido iria porventura apresentar queixa?” (Diógenes Laércio, II, 2I)””
““Para Schopenhaurer: a existência objectiva das coisas, a sua “representação” é sempre agradável, ao passo que a existência subjectiva é sempre dor.
“Todas as coisas são belas à vista e terríveis no seu ser, donde a ilusão, tão corrente e que sempre me impressiona, da unidade exterior da vida dos outros.””
““Problema da transição. Deveria a Rússia passar pelo estádio da revolução burguesa e capitalista, como o exigia a lógica da história? Neste ponto só Tkatchev (com Netchaev e Bakunine) é o predecessor de Lénine. Marx e Engels eram mencheviques. Eles só tinham em vista a revolução burguesa futura.
As constantes discussões dos primeiros marxistas sobre a necessidade do desenvolvimento capitalista da Rússia e a sua tendência para acolherem esse desenvolvimento. Tikhomirov, velho membro do partido da vontade do povo, acusa-os de se fazerem “os paladinos das primeiras capitalizações.””
“Finalmente, á a vontade do proletariado que transforma o mundo. Há por conseguinte verdadeiramente no marxismo uma filosofia essencial que denuncia a mentira da objectivação e afirma o triunfo da actividade humana.”
“Em russo volia significa igualmente vontade e liberdade.”
“Lénine afirma a primazia do político sobre o económico (a despeito do marxismo).”
“Lucaks: O sentido revolucionário é o sentido da totalidade. Concepção do mundo total em que a teoria e a prática são identificadas.
Sentido religioso segundo Berdiaev.”
(Andava eu, certamente, a ler Lucaks)
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).
01/02/2004
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 4
“Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.”
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 3
Tinha sido feito para ter um corpo. Daí esta harmonia em mim próprio, este autodomínio sem esforço que as pessoas sentiam e, segundo confessavam por vezes, as ajudava a viver. (…) Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.”
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 2
“Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, isento de qualquer obrigação, de todo o julgamento e sanção, eu imperava, livremente, numa luz edénica.
Não seria isso, efectivamente o Éden, meu caro senhor: a vida em prise directe? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. Nesse ponto, já tudo eu sabia ao nascer. Há pessoas cujo problema consiste em resguardarem-se dos homens ou, pelo menos, acomodarem-se a eles. Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz de desenvoltura como de gravidade, estava sempre ao nível. Era por isso grande a minha popularidade e os meus êxitos na sociedade nem se contavam. Tinha boa figura, revelava-me simultaneamente bailarino infatigável e discreto erudito, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, dedicava-me aos desportos e às belas-artes, enfim, não digo mais, não vá suspeitar que me envaideço. Mas imagine, peço-lhe, um homem na força da idade, de perfeita saúde, generosamente dotado, hábil nos exercícios do corpo como nos do intelecto, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem que o mostrasse, a não ser por uma feliz sociabilidade. Admitirá, pois, que eu possa falar com verdadeira modéstia, de uma vida em pleno êxito”
Não seria isso, efectivamente o Éden, meu caro senhor: a vida em prise directe? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. Nesse ponto, já tudo eu sabia ao nascer. Há pessoas cujo problema consiste em resguardarem-se dos homens ou, pelo menos, acomodarem-se a eles. Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz de desenvoltura como de gravidade, estava sempre ao nível. Era por isso grande a minha popularidade e os meus êxitos na sociedade nem se contavam. Tinha boa figura, revelava-me simultaneamente bailarino infatigável e discreto erudito, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, dedicava-me aos desportos e às belas-artes, enfim, não digo mais, não vá suspeitar que me envaideço. Mas imagine, peço-lhe, um homem na força da idade, de perfeita saúde, generosamente dotado, hábil nos exercícios do corpo como nos do intelecto, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem que o mostrasse, a não ser por uma feliz sociabilidade. Admitirá, pois, que eu possa falar com verdadeira modéstia, de uma vida em pleno êxito”
Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves)
“A qualquer hora do dia, em mim próprio e entre os outros, eu subia às alturas, acendia aí fogueiras bem visíveis e alegres saudações subiam até mim. Era assim que eu tomava gosto à vida e à minha própria excelência.
A minha profissão satisfazia, felizmente, esta vocação das alturas. Ela livrava-me de toda a amargura em relação ao próximo, que eu sempre obsequiava, sem nunca lhe dever nada. Colocava-me acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava, acima do réu que eu forçava ao reconhecimento. Pondere bem nisto, meu caro senhor: eu vivia impunemente. Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em qualquer outra parte, nos urdimentos, como esses deuses que, de tempos a tempos, são descidos por meio de um maquinismo, para transfigurar a acção e dar-lhe o seu sentido. No fim de contas, viver por cima é ainda a única maneira de ser visto e saudado pela maioria.”
A minha profissão satisfazia, felizmente, esta vocação das alturas. Ela livrava-me de toda a amargura em relação ao próximo, que eu sempre obsequiava, sem nunca lhe dever nada. Colocava-me acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava, acima do réu que eu forçava ao reconhecimento. Pondere bem nisto, meu caro senhor: eu vivia impunemente. Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em qualquer outra parte, nos urdimentos, como esses deuses que, de tempos a tempos, são descidos por meio de um maquinismo, para transfigurar a acção e dar-lhe o seu sentido. No fim de contas, viver por cima é ainda a única maneira de ser visto e saudado pela maioria.”
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