13/03/2004

Camus e a Primavera (Sublinhados de Ana Alves)

« […] Acontece-me, por vezes, ao voltar de uma dessas curtas tréguas que nos deixa a luta comum, pensar em todos os recantos da Europa que conheço bem. É uma terra magnífica, feita de sacrifícios e de história. Revejo as peregrinações que fiz com todos os homens do Ocidente. As rosas nos claustros de Florença, as tulipas douradas de Cracóvia, o Hradschin com os seus paços mortos, as estátuas contorcidas da ponte Karl sobre Ultava, os delicados jardins de Salzburgo. Todas essas flores, essas pedras, essas colinas e essas paisagens onde o tempo dos homens e o tempo da natureza confundiram velhas árvores e monumentos! A minha memória fundiu essas imagens sobrepostas para delas formar um rosto único: o da minha pátria maior. Algo me oprime quando penso, então, que sobre esse rosto enérgico e atormentado paira, desde alguns anos, a vossa sombra. E no entanto, há alguns desses lugares que você visitou comigo. Eu não imaginava, nessa altura, que fosse um dia necessário defendê-los contra os vossos. E agora ainda, em certos momentos de raiva e desespero, lamento que as rosas possam ainda crescer no claustro de São Marcos, os pombos lançar-se em bandos da catedral de Salzburgo e os gerânios vermelhos germinarem incessantemente nos pequenos cemitérios da Silésia.

Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue. […] Sei assim que tudo na Europa, a paisagem e a alma, vos rejeitam serenamente, sem ódios desordenados, mas com a força calma das vitórias. As armas de que dispõe o espírito europeu contra as vossas são as mesmas que nesta terra sempre renascente fazem crescer as searas e as corolas. O combate em que nos empenhamos possui a certeza da vitória, porque é teimoso como a Primavera
.
[…] » - pp. 68-71

Albert Camus, Cartas a um Amigo Alemão, Carta Terceira (Abril de 1944), Livros do Brasil, Lisboa – pp. 68-71.

01/03/2004

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 10


Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessámos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no «desconforto».

Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.

Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.

Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?

Ana Alves - Informação bibliográfica

Encontrei, da Alianza Editorial, editado em 2002, o livro Camus – Crónicas (1944-1953), e ao consultar o site da editora em http://www.alianzaeditorial.es/ verifiquei que têm publicados os cadernos I e II.

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 9

O verdadeiro deboche é libertador porque não cria nenhuma obrigação. No deboche, só nos possuímos a nós mesmos; ele fica sendo, pois, a ocupação preferida dos grandes apaixonados da sua própria pessoa.

A indiferença, que ocupava já tanto espaço dentro de mim, deixava de encontrar resistência e alastrava a sua esclerose. Nada de emoções! Um humor igual, ou antes, humor nenhum.

Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-me e reconhecer a minha culpabilidade. Era preciso viver no «desconforto». É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável! Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.

Há sempre razões para matar um homem. Pelo contrário, é impossível justificar-se que ele viva. Aí está porque o crime encontra sempre advogados e a inocência por vezes apenas.

10/02/2004

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 6

Estes são os últimos sublinhados do Caderno nº5. Neste conjunto de excertos acrescentei um único texto não sublinhado da minha leitura de juventude. È o texto “Verdade deste século: …” que encerra o Caderno n.º5 que, no seu conjunto, corresponde aos apontamentos de Camus no período que decorre de Setembro de 1945 a Abril de 1948.

““O que existe na Rússia é uma liberdade colectiva “total” e não pessoal. Mas que é uma liberdade total? É-se livre de alguma coisa – em relação a. Visivelmente, o limite é a liberdade em relação a Deus. Vê-se então claramente que essa liberdade significa a sujeição ao homem.””

“Peça Dora: Se tu não amas ninguém, isso não pode vir a acabar bem.”


(Mais uma vez a peça “Os Justos”, assim como nalguns excertos que surgirão a seguir.)

““Quantos eram os membros da “Vontade do povo”? 500. E o Império Russo? Mais de cem milhões.””
(Sublinhei somente “500”)

“” Vera Figner: “Eu devia viver, viver para ser julgada, pois o processo coroa a actividade do revolucionário.””

““Peça. Dora ou outra: “Condenados, condenados a serem heróis e santos. Heróis à força. Por isso não nos interessa, compreendem, não nos interessam nada os sórdidos negócios deste mundo envenenado e estúpido que se pega a nós como visco. – Confessai, confessai-o, que o que vos interessa são os seres e o seu rosto... E que, pretendendo procurar uma verdade, não esperais no fim de contas senão amor.””

“É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.”

“Formas e revolta. Dar uma forma aquilo que é informe, é o fim de toda a obra. Não há apenas criação, mas correcção (ver mais acima). Daí a importância da forma. Daí a necessidade de um estilo para cada assunto, não de todo diferente porque a língua do autor é sempre sua. E é justamente esta que fará quebrar não a unidade deste ou daquele livro mas a da obra inteira.”

“Retirei-me do mundo não porque tivesse inimigos, mas porque tinha amigos. Não que eles não me fossem prestáveis como é habitual, mas julgavam-me melhor do que sou. É uma mentira que eu não posso suportar”

“Para os cristãos, a Revelação está no início da história. Para os marxistas, está no fim. Duas religiões.”
(Coloquei? no fim da frase)

“Pequena baía antes de Tenés, na base de uma cadeia de montanhas. Semicírculo perfeito. Ao cair da noite uma plenitude angustiada plana sobre as águas silenciosas. Compreende-se então porque é que os Gregos formaram a ideia do desespero e da tragédia sempre através da beleza e do que nela há de opressivo. É uma tragédia que culmina. Ao passo que o espírito moderno produz o seu desespero a partir da fealdade e do medíocre.
É o que Char quer dizer talvez. Para os Gregos, a beleza é o ponto de partida. Para um europeu, é um fim, raramente atingido. Não sou moderno.”

“Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos. Acabar com tudo o mais e dizer o que tenho de mais profundo.”


Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).

08/02/2004

ARTIGO DO NEW YORK TIMES sobre Camus e os "neo-conservadores"

EDWARD ROTHSTEIN - Connections: Camus and the Neo-Cons: More in Common Than They Might Suspect

February 7, 2004


It was a heady moment. Liberation was at hand. The world's
most powerful totalitarian state had been defeated.
World-historical struggles had come to an end.

Such was the situation after the Soviet Union collapsed.
And the sense of triumph was palpable. In an essay
reprinted in "The Norman Podhoretz Reader" (Free Press),
Mr. Podhoretz wrote a "Eulogy" for neo-conservatism - the
political and cultural movement with which he and the
magazine he edited, Commentary, had been so closely
identified. It was a eulogy that proclaimed satisfaction
and closure. For two decades, Commentary had advocated
unrelenting challenges to Soviet power, and while the
downfall had never been seen as imminent, it had always
been hoped for.

In his introduction to this new collection - which samples
Mr. Podhoretz's argumentative power and rhetorical range
over nearly 50 years - Paul Johnson notes that the Soviet
collapse also brought to its end an era in American
intellectual life in which Mr. Podhoretz had been a major
player.

But as central as Soviet Communism was to
neo-conservativism, the eulogy, of course, was premature.
History did not come to end. Free-market economies ran into
trouble. Genocidal massacres took place. Terrorism erupted.
Old conflicts were metastasizing, emerging in new
configurations. So neo-conservativism continues, now even
taking center stage, named as the ideology behind President
Bush's foreign policy.

In neo-conservatism's continued evolution, though, how are
lessons learned from the past to be applied to a
transformed world? An example from the past may show how
vexed such questions can be.

Consider the period just after the Second World War, when
another tyranny had just collapsed. It seemed as if the
Allies had, through their trials, learned something about
totalitarianism and democracy. Could those concepts be used
to understand the Soviet Union, the West's erstwhile
partner? Was it something very different (a humanitarian
revolutionary state gone awry) or something very similar (a
fascistic state beyond saving)?

Such issues affected the impassioned arguments between the
two most important writers in postwar France, Albert Camus
and Jean-Paul Sartre. In his new book, "Camus and Sartre:
The Story of a Friendship and the Quarrel That Ended It"
(University of Chicago), Ronald Aronson, who teaches at
Wayne State University, traces the nuances of their
friendship, their mutual influences and hostilities, and
the themes that still haunt contemporary debates.

Their schism over Communism was not academic. At the time
of France's liberation, buoyed by its Resistance role, the
Communist Party had 400,000 members; that figure almost
doubled by 1946, and the party joined a coalition
government. In addition, according to Mr. Aronson, the
party dominated the largest trade union, published dozens
of newspapers including the country's two largest, and had
a payroll of more than 14,000. The Communist Party was part
of the mainstream in a way it never was in the United
States.

But its allegiances were just as open to question: it
slavishly followed Soviet leadership; fellow travelers
idealized the Soviet Union, despite readily available
accounts of horrors. Andri Gide, who visited Russia in the
1930's, said he doubted whether anywhere, even in Hitler's
Germany, the "mind and spirit are less free, more bowed
down."

Camus had joined the party in Algeria in 1935 and left two
years later in dismay. Mr. Aronson even implies that Camus'
views on absurdity and freedom grew out of that experience.


Then, in France, during the German occupation, Camus did
heroic work as editor of a Resistance newspaper, Combat.
Sartre, in their developing friendship, called Camus an
"outstanding example" of a life lived in "engagement."
After the war, both men saw an opportunity to remake the
world, redressing social ills. Both also wanted to steer
the French left away from the Communists while distancing
themselves from the growing cold war.

But by 1948, Sartre had become a fellow traveler, even
giving the party the right to censor one of his plays. He
called freedom under capitalism a "hoax" and France a
"society of oppression." He refused to denounce Soviet
labor camps or the show trials. And he justified
revolutionary violence, praising the African revolutionary
Franz Fanon.

Meanwhile, Camus found himself ever more repulsed by
Communism, which he called "the modern madness." He saw
Communism as a desperate attempt to create meaning and
certainty. He wrote, "Those who pretend to know everything
and settle everything finish by killing everything." If
there were a choice between justice and freedom, meaning a
choice between the ideal Communist state and the flawed
Western state, he wrote: "I choose freedom. For even if
justice is not realized, freedom maintains the power of
protest against injustice and keeps communication open."

After Sartre's journal, Les Temps Modernes, panned Camus's
influential counter-revolutionary book "The Rebel" in 1952,
the friends never spoke again. Sartre's influence was so
strong that Camus' French reputation was not repaired even
after winning the Nobel Prize in 1957.

But Mr. Aronson does not want the reader taking sides. He
insists that we have to "free ourselves from the dualistic
thinking of the cold war," and not take the "currently
fashionable" view praising Camus. Mr. Aronson argues, in
fact, that "like many another anti-Communist, Camus wrecked
his own moral and political coherence by avoiding talking
about his own society" while Sartre correctly "confronted
the violence of the democratic capitalist system" and the
evils of colonialism. But in this, Mr. Aronson is simply
taking Sartre's side without attending to its minefields.

Camus, in his concreteness and human sensitivities, is more
perceptive, and in his compassion, more trustworthy. He had
a major influence on later French writers like Andri
Glucksmann, Bernard-Henri Livy and Pascal Bruckner - the
neo-cons of the French left. And in Camus's rejection of
utopianism and his acceptance of sad compromise there
remain hints of what might form some sort of realistic
political ideal.



NOTA: artigo enviado por Leonel Vicente e cuja ligação original é esta.

07/02/2004

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 8

(começar a ver; a nudez perante si)


Aquilo de que mais gosto no mundo é a Sicília, já pode ver, e ainda do cimo do Etna, em plena luz do dia, sob condição de dominar a ilha e o mar. Java também, mas na época dos alíseos. Sim, estive lá, em novo. De uma maneira geral gosto das ilhas. É mais fácil imperar aí.


Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.


Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.


Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.


Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.

(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome.


Avançava assim à superfície da vida, por palavras, de certo modo, nunca na realidade. Todos esses livros mal lidos, esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal possuídas! Eu fazia gestos por enfado ou por distracção. Os seres vinham logo atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles. Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo.


A verdade é que todo o homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.


Daria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bonita figurante. É verdade que, ao décimo encontro, eu suspiraria por Einstein ou por umas fortes leituras. Em suma, nunca me incomodei com os grandes problemas senão nos intervalos dos meus pequenos desregramentos.


O acto de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade aí pavoneia, ou então aí se revela a verdadeira generosidade.

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 7

(a noite do riso)

Ergui a cabeça e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, estalou um riso atrás de mim. Surpreendido, voltei-me bruscamente: não havia ninguém. Fui até ao parapeito: nenhum batelão, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso pelas minhas costas, um pouco mais distante, como se fosse a descer o rio. Fiquei ali, imóvel. O riso diminuía, mas eu ouvia-o ainda mais distintamente por detrás de mim, vindo de parte nenhuma, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, percebia que o meu coração batia precipitadamente. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso; era um riso bom, natural, quase amigável, que repunha as coisas no seu lugar. Em breve, aliás, deixei de o ouvir. Alcancei os cais, meti pela rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava aturdido, respirava a custo. Nessa noite, telefonei para um amigo que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi rir sob as minhas janelas. Abri. Efectivamente, no passeio, alguns jovens despediam-se alegremente. Fechei de novo as janelas, encolhendo os ombros; ao fim e ao cabo, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me à casa de banho para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que o meu sorriso era dúbio…

Ana Alves – Sobre os Justos

Albert Camus, Os Justos , Editora: Livros do Brasil

(Transcrito de O Citador )

Esta peça de teatro lê-se em algumas horas, quanto muito numa tarde. Nela, ao conceito metafísico de Justiça - com maiúscula -, Camus contrapõe, prefere e defende aquilo que António Quadros - tradutor e autor do prefácio na edição "Livros do Brasil" - designa por "ética do justo".
Sob o pretexto de um enredo simples - um grupo de revolucionários russos planeia um atentado à bomba contra a pessoa do grão-duque -, representa-se neste livro a luta entre os conceitos - abstractos, ideais, futuros, eventuais - que não raro se elevam, na sua inerente transcendência, muito acima da vida que deveriam servir, e os actos - isolados, mas concretos, operantes, presentes - que em si permitem uma maior proximidade entre a vida humana e os seus mais nobres valores.
Camus refuta a existência de uma Justiça e confronta-a com os justos -aqueles que, em cada acto, por mais simples, consideram antes de mais o respeito fundado no amor.

É assim que Yanek (Kaliayev), incumbido de lançar a primeira das várias bombas fatais, à passagem da carruagem do grão-duque, apercebendo-se que este se faz acompanhar de duas crianças, se sente incapaz de cumprir apalavra dada ao grupo.
E explica-o, desolado:

«Eu não sabia, não podia prever. Crianças, sobretudo crianças. Viste as crianças? Esse olhar sério que têm às vezes... Não fui capaz de as olhar a direito... E, no entanto, um minuto antes, no canto sombrio do pequeno largo, eu estava feliz. Juro-te, quando as lanternas da carruagem começaram a brilhar ao longe, senti o meu coração bater de alegria. Batia cada vez com mais força, à medida que o barulho das rodas da carruagem aumentava. E esse barulho estava dentro de mim. Tinha vontade de saltar. Creio mesmo queria. E dizia «sim, sim...». Compreendes?
Corri para ela. Foi nesse momento que os vi.[...]
Então, não sei o que se passou. Os meus braços enfraqueceram de repente. As pernas tremiam-me. Um instante depois, era tarde demais...[...]»


Inicia-se aqui a discussão, protagonizada por Yanek e Stepan - este, incapaz de compreender a hesitação do primeiro -, que é a alma da peça, e na qual surgem questões essenciais; dois exemplos:

- a luta pela Justiça fundamentará a prática de actos injustos, como o que resultaria da morte dos sobrinhos do grão-duque?

- a Justiça mede-se em termos quantitativos ou de natureza? - na ignóbil comparação de Stepan: «Porque Yanek não as matou [às duas crianças que acompanhavam o grão-duque], milhares de crianças russas morrerão de fome nos próximos anos.»

Stepan toma o partido do Elevado Conceito; Yanek defende os actos em si. Por fim, Yanek exprime aquilo que, possuindo um contexto claro na peça, se revela também, afinal, o resumo da própria filosofia de Camus (e aquilo que o fez desentender-se com Sartre, sendo que nesse momento somos levados a reler Stepan em busca do desenho desse filósofo):

«[...]amo os que vivem hoje na mesma terra que eu, e são esses que saúdo. É por eles que luto e é por eles que estou disposto a morrer. E por uma cidade longínqua, de que não tenho sequer a certeza, não irei contra os meus irmãos. Não aumentarei a injustiça viva em nome de uma justiça morta.»

Além da clareza da escrita, que atravessa a obra de Camus, o que seduz neste livro é a sua perfeita actualidade - o enredo, localizado na Rússia, serve de mero pretexto para um debate intemporal -, bem como a possibilidade de, a partir do dilema apresentado, se estender a crítica a todos os grandes conceitos e todos os pequenos actos e à frágil compatibilidade entre eles.

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 5


Nos meus sublinhados de juventude destes Cadernos omito, pela primeira vez, dois excertos de diálogos que viriam a integrar a futura peça de teatro Os Justos. A sua transcrição integral tornaria demasiadamente longa esta contribuição para o projecto Cadernos de Camus. Mantenho, no entanto, um excerto dos diálogos preparatórios dessa peça.
Esta série de excertos do Caderno nº 5 consta do volume Cadernos III, respeitante ao período Setembro de1945/Abril de 1948:

“Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.”
(Esta frase sublinhada faz parte de um texto longo, que não transcrevo na íntegra, no qual, à margem, escrevi à mão: “cuidado!”)

“Conheço-me bem de mais para crer na virtude completamente pura.”

“O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos: o conformismo.”

“O grande problema da vida é saber como viver entre os homens”

(Apresenta uma nota de pé de página onde se lê: “No manuscrito, encontra-se entre parênteses: A.F.”)

X. “Sou um homem que não crê em nada e que não ama ninguém, pelo menos no âmago. Há em mim um vazio, um deserto horrível...”

“Marc condenado à morte na prisão de Loos. Recusa que lhe tirem os ferros durante a Semana Santa para se parecer mais com o seu salvador. Antigamente disparava contra os crucifixos que encontrava nas estradas.”

“Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.”

“Peça.
D. – O que há de triste, Yanek, é que tudo isso nos envelhece. Nunca mais, nunca mais seremos crianças. Podemos morrer desde este instante, já esgotámos o homem (o homicídio é o limite.)
- Não, Yanek, se a única solução é a morte, então não seguimos a boa vida. A boa vida é a que leva à vida.
- Tomámos sobre nós o mal do mundo, este orgulho há-de ser castigado.
- Passámos dos amores infantis a essa inicial e derradeira amante que é a morte. Andámos depressa de mais. Não somos homens.”


(Este excerto é o único que transcrevo daqueles que sublinhei dos textos preparatórios da peça de teatro Os Justos. Esta peça foi concluída, após uma viagem à América Latina, no Verão de 1949, estando Camus gravemente doente. Nela é abordada a questão, fundamental para Camus, da violência política cujo debate requer, em qualquer circunstância, um adequado enquadramento filosófico e histórico.)

“Miséria deste século. Ainda não há muito tempo eram as más acções que precisavam de ser justificadas, hoje são as boas.”

“A solidão perfeita. No urinol de uma grande estação à uma hora da manhã.”

(Contém uma nota de pé de página onde se escreve. “Esta observação foi acrescentada à mão sobre a primeira redacção à máquina”).

“Bayle: pensamentos diversos sobre o cometa.

“Não de deve julgar a vida de um homem nem pelas suas crenças nem pelo que publica nos livros.””

“Como fazer compreender que uma criança pobre pode ter vergonha sem ter inveja”

(Clara referência à infância pobre do próprio Camus.)

Vigny (correspondência): “ A ordem social é sempre má: de tempos a tempos é apenas suportável. Para se ir do mau ao suportável, a disputa não vale uma gota de sangue” Não, o suportável merece, se não o sangue, pelo menos o esforço de uma vida inteira.
Misantropo em grupo, o individualista perdoa ao indivíduo.”

“Saint-Beuve: “Sempre pensei que se as pessoas dissessem o que pensam durante um minuto apenas a sociedade ruiria.”


Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).

David Leandro - Sobre um livro

Hélder Ribeiro, Do Absurdo à Solidariedade - a visão do mundo de Albert Camus, Editorial Estampa, Lx, 1996.

Foi o meu professor de filosofia, depois um amigo, que me mostrou a partir da convivência de um movimento de campos de férias - MOCAMFE - a viva vivida do absurdo à solidariedade. Morreu um outro dia. Mas ensinou-me para o resto da vida o "Solitário ou solidário?".
Onde está, não sei... mas acompanhará com todo o prazer de menino os cadernos do Camus e as nossas vidas solidárias.

03/02/2004

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 6

(A Morte)

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.


É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.


É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 5

Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente de Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de fazer frente.

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 4

Estes não são os derradeiros sublinhados no Caderno n.º5. O conjunto era demasiadamente longo e por essa razão dividi-o em duas partes. Como em anteriores excertos há casos de citações de citações. Tentei sempre ser o mais claro possível colocando-me do lado do leitor destas notas. Omito, nesta série de sublinhados, a transcrição de um excerto por ser demasiado extenso e apresentar uma configuração que não se enquadra neste formato. O Caderno n.º5, do volume Cadernos III (edição portuguesa), respeita ao período Setembro de1945/Abril de 1948:

“Palante diz com razão que se há uma verdade una e universal, a liberdade não tem razão de ser.”

É como se fosse absolutamente necessário escolher entre o aviltamento e o castigo.”

“Mas ninguém é culpado absolutamente, não se pode pois condenar ninguém absolutamente I) aos olhos da sociedade 2) aos olhos do indivíduo.”

““Sócrates atingido por um pontapé. “Se um burro me tivesse batido iria porventura apresentar queixa?” (Diógenes Laércio, II, 2I)””

““Para Schopenhaurer: a existência objectiva das coisas, a sua “representação” é sempre agradável, ao passo que a existência subjectiva é sempre dor.
“Todas as coisas são belas à vista e terríveis no seu ser, donde a ilusão, tão corrente e que sempre me impressiona, da unidade exterior da vida dos outros.””

““Problema da transição. Deveria a Rússia passar pelo estádio da revolução burguesa e capitalista, como o exigia a lógica da história? Neste ponto só Tkatchev (com Netchaev e Bakunine) é o predecessor de Lénine. Marx e Engels eram mencheviques. Eles só tinham em vista a revolução burguesa futura.
As constantes discussões dos primeiros marxistas sobre a necessidade do desenvolvimento capitalista da Rússia e a sua tendência para acolherem esse desenvolvimento. Tikhomirov, velho membro do partido da vontade do povo, acusa-os de se fazerem “os paladinos das primeiras capitalizações.””

“Finalmente, á a vontade do proletariado que transforma o mundo. Há por conseguinte verdadeiramente no marxismo uma filosofia essencial que denuncia a mentira da objectivação e afirma o triunfo da actividade humana.”

“Em russo volia significa igualmente vontade e liberdade.”

“Lénine afirma a primazia do político sobre o económico (a despeito do marxismo).”

“Lucaks: O sentido revolucionário é o sentido da totalidade. Concepção do mundo total em que a teoria e a prática são identificadas.
Sentido religioso segundo Berdiaev.”


(Andava eu, certamente, a ler Lucaks)

Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 (Setembro de 1945/ Abril de 1948).

01/02/2004

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 4

“Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.”

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 3

Tinha sido feito para ter um corpo. Daí esta harmonia em mim próprio, este autodomínio sem esforço que as pessoas sentiam e, segundo confessavam por vezes, as ajudava a viver. (…) Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves) 2

“Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, isento de qualquer obrigação, de todo o julgamento e sanção, eu imperava, livremente, numa luz edénica.

Não seria isso, efectivamente o Éden, meu caro senhor: a vida em prise directe? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. Nesse ponto, já tudo eu sabia ao nascer. Há pessoas cujo problema consiste em resguardarem-se dos homens ou, pelo menos, acomodarem-se a eles. Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz de desenvoltura como de gravidade, estava sempre ao nível. Era por isso grande a minha popularidade e os meus êxitos na sociedade nem se contavam. Tinha boa figura, revelava-me simultaneamente bailarino infatigável e discreto erudito, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, dedicava-me aos desportos e às belas-artes, enfim, não digo mais, não vá suspeitar que me envaideço. Mas imagine, peço-lhe, um homem na força da idade, de perfeita saúde, generosamente dotado, hábil nos exercícios do corpo como nos do intelecto, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem que o mostrasse, a não ser por uma feliz sociabilidade. Admitirá, pois, que eu possa falar com verdadeira modéstia, de uma vida em pleno êxito”

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves)

“A qualquer hora do dia, em mim próprio e entre os outros, eu subia às alturas, acendia aí fogueiras bem visíveis e alegres saudações subiam até mim. Era assim que eu tomava gosto à vida e à minha própria excelência.

A minha profissão satisfazia, felizmente, esta vocação das alturas. Ela livrava-me de toda a amargura em relação ao próximo, que eu sempre obsequiava, sem nunca lhe dever nada. Colocava-me acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava, acima do réu que eu forçava ao reconhecimento. Pondere bem nisto, meu caro senhor: eu vivia impunemente. Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em qualquer outra parte, nos urdimentos, como esses deuses que, de tempos a tempos, são descidos por meio de um maquinismo, para transfigurar a acção e dar-lhe o seu sentido. No fim de contas, viver por cima é ainda a única maneira de ser visto e saudado pela maioria.”

27/01/2004

Camus - A Queda (Sublinhados de Ana Alves)

Albert Camus - A Queda - Sublinhados # 1


1.

"Ser senhor dos seus humores é o privilégio dos grandes animais" - p.14


2.

"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções." - p. 15


3.

"Os holandeses, oh!, são muito menos modernos! Têm tempo, repare neles. Que fazem? Ora bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. São, de resto, machos e fémeas, umas burguesíssimas criaturas que têm o costume de vir aqui, por mitomania ou estupidez. Em suma, por excesso ou falta de imaginação. De tempos a tempos, estes senhores puxam pela faca ou pelo revólver, mas não julgue que com muito empenho. O papel exige, eis tudo, e morrem de medo, disparando os últimos cartuchos. Posto o que, acho ainda mais moralidade neles que nos outros, aqueles que matam em família, pelo desgaste. Não notou ainda que a nossa sociedade está organizada neste género de liquidação? Já ouviu falar, naturalmente, daqueles minúsculos peixes dos cursos de água brasileiros que se lançam aos milhares sobre o nadador imprudente e o limpam, em alguns instantes, a pequenas bocadas rápidas, não deixando mais que um esqueleto imaculado? Pois bem, é essa a organização deles. «Quer uma vida limpa? Como toda a gente?» Dirá que sim, naturalmente. Como dizer que não? «De acordo. Vai ficar limpinho. Aqui tem um emprego, uma família, lazeres organizados.» E os dentes minúsculos cravam-se na carne até aos ossos. Mas sou injusto. Não é a organização deles que se deve dizer. Ela é a nossa, ao fim e ao cabo: é a ver quem limpará o próximo." - pp. 18-20.


4.

“(…) era advogado, antes de vir para aqui. Agora, sou juiz-penitente.

Mas dê-me licença que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, um seu criado. Muito gosto em conhecê-lo. Nos negócios, não é verdade? Mais ou menos? Excelente resposta! E judiciosa também; nós não estamos senão mais ou menos em todas as coisas.” – p.21


5.

“Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” - p. 24 [link possível para Cartas a Um Amigo Alemão aqui]


6. (Jean-Baptiste explica o advogado que era:)


6. 1.

“Eu tinha o coração nas mangas. Era mesmo de crer que a justiça dormisse comigo todas as noites” – p. 36


6. 2.

“(…) eu ganhava a vida dialogando com pessoas que desprezava.

Mas, enfim, estava do bom lado, isso bastava para a paz da minha consciência. O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios, são, caro senhor, molas poderosas para nos suster de pé ou nos fazer avançar.” – p. 37


6. 3.

“O meu mérito era nulo: a avidez, que na nossa sociedade faz as vestes da ambição, sempre me fez rir. Eu visava mais alto; verá como a expressão é exacta, no que me diz respeito.” [sublinhado 6.7.] – p. 39


6. 4.

“arrancava o cego a qualquer solicitude e conduzia-o com mão leve e firme sobre a faixa de passagem, entre os obstáculos do trânsito, até à angra tranquila do passeio onde nos separávamos com mútua emoção.” – p. 40


6. 5.

“Um grande cristão meu amigo reconhecia que o primeiro sentimento que experimentamos, ao ver um mendigo abeirar-se da nossa casa, é de desagrado. Pois bem, comigo era pior: eu exultava.” – p. 41

6. 6.

“Rejubilava até, devo dizê-lo, com os dias em que, devido à greve dos transportes públicos, eu tinha ocasião de meter no meu automóvel, alguns dos meus infelizes concidadãos, impossibilitados de voltar para casa.” – p. 42


6. 7.

“Ser detido, por exemplo, nos corredores do Tribunal pela mulher de um réu que defendêramos unicamente por justiça ou piedade, quero dizer gratuitamente, ouvir esta mulher murmurar que nada, nada poderá pagar o que se fez por eles, responder então que era natural, outro qualquer teria feito o mesmo, oferecer até uma ajuda para as dificuldades dos dias mais próximos, depois, finalmente, a fim de pôr termo às efusões e conservar-lhes assim uma justa ressonância, beijar a mão dessa pobre mulher e acabar com aquilo, acredite, meu caro senhor, é subir mais alto do que a ambição vulgar e içar-se ao ponto culminante onde a virtude já não se sustenta senão de si própria." - p.44


6.8.

“Nunca me senti à vontade senão nas situações elevadas. Até nos pormenores da vida eu tinha necessidade de estar por cima. Preferia o autocarro ao metropolitano, as caleças aos táxis, os terraços às sobrelojas. (…) Os paióis, os porões, os subterrâneos, as grutas, os abismos, causavam-me horror. Ganhara mesmo um ódio especial aos espeleólogos (…)” – p. 45


(continua 6.9. - p.46)

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 3

Os meus sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos salta, por razões que não sou capaz de explicar, para o Caderno nº5. A edição portuguesa dos “Livros do Brasil” (Colecção Miniatura), apresenta uma configuração diferente da francesa, das Edition Gallimard, como é explicado no volume intitulado Cadernos III: “Por motivos de ordem técnica, Carnets II foi dividido, na edição portuguesa, em dois volumes: Cadernos II (já publicado nesta colecção sob o número 162) e Cadernos III, que é o presente volume”. Os extractos do Caderno 5 a que se seguem constam, pois, dos Cadernos III que dizem respeito ao período Setembro de1945/Abril de 1948.

Estes extractos são, por vezes, mais longos do que nas anteriores incursões por este registo de leitura o que se deve ao facto de terem sido leituras posteriores a Abril de 68, provavelmente de 69/70, no período da crise académica na qual participei activamente.

O ar de pobres diabos que têm as pessoas nas salas de espera dos médicos”.

“Conversações com Koestler. O fim não justifica os meios senão quando a ordem de grandeza recíproca for razoável. Posso mandar Saint-Exupéry em missão mortal para salvar um regimento. Mas não posso deportar milhões de pessoas e suprimir toda a liberdade por um resultado quantitativo equivalente e estipular previamente o sacrifício de três ou quatro gerações.
- O génio: Não existe.
- A grande miséria do criador começa quando se lhe reconhece talento (Já não tenho coragem de publicar os meus livros).”

“1947
Como todos os fracos, as suas decisões eram brutais e de uma firmeza insensata”.

“Que vale o homem? Que é o homem? Depois de tudo o que vi, enquanto eu viver, hei-de ficar sempre com uma desconfiança e uma inquietação fundamental a seu respeito.”

“Terrorismo.
A grande pureza do terrorista estilo Kalyaev, é que para ele o homicídio coincide com o suicídio (cf. Savinkov: Recordações de um terrorista). Uma vida paga-se com outra vida. O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida ceifada não vale uma vida dada.) Hoje o homicídio por procuração. Ninguém paga.
1905 Kaliayiev: o sacrifício do corpo. 1930: o sacrifício do espirito.”

“Que é impossível, a respeito de quem quer que seja, dizer que é absolutamente culpado e, por conseguinte, impossível pronunciar um castigo total.”


“25 de Junho de 1947
Tristeza do êxito. A adversidade é necessária. Se tudo me fosse mais difícil, como dantes, teria mais direito a dizer o que digo. O que vale é que posso ajudar muitas pessoas – entretanto.”


(No ano de 1947 Camus abandona a redacção do jornal Combat e publica o romance A Peste que o torna célebre o que, sem dúvida, explica esta reflexão acerca do êxito. Nos meus sublinhados verifico a curiosidade de ter colocado entre aspas a frase “A adversidade é necessária”. Um sublinhado do sublinhado).

Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 ( Setembro de 1945/ Abril de 1948).

26/01/2004

Resposta de Roland Barthes a Camus

Ao sr. Albert Camus
Librairie Gallimard Rue Sébastien-Bottin Paris, 7º distrito

Paris, 4 de fevereiro de 1955

Caro senhor,

agradeço-lhe as observações que o senhor teve a bondade de fazer a propósito de minha resenha d'``A Peste''. Elas não me demovem de meu ponto de vista, mas de qualquer modo permitem-me situar melhor o debate que nos opôs.
Penso que concordaríamos em resumir este debate da seguinte maneira: o romancista tem o direito de alienar os fatos da história? Poderá uma peste equivaler, não digo a uma ocupação, mas à Ocupação?
Todo o seu livro, a epígrafe que o senhor inseriu, suas próprias explicações reivindicam esse direito, que precisamente se confunde, aos seus olhos, com a rejeição do realismo em arte -no qual o senhor lembra não acreditar.
Ora, no que me diz respeito, eu creio nele; ou ao menos (pois o termo ``realismo'' tem uma hereditariedade bastante pesada) creio numa arte literal em que as pestes não são outra coisa além de pestes, em que a Resistência é a resistência integral.
Vejo nessa arte literal o único recurso possível contra uma moral formal (própria, creio eu, a distrair-nos da ``teimosia dos fatos''), única forma de respeito possível frente à História, cujos males só são remediáveis se os encaramos em sua literalidade absoluta, e não como símbolos ou germes possíveis de uma equivalência.
O senhor me pede que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral d'``A Peste''. Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais completa que uma moral da expressão. Eu o teria declarado antes, se não temesse parecer demasiado pretensioso ao me filiar a um método que exige tanto de seus partidários.
Portanto, o que procurei contestar foi um sistema, não uma pessoa ou um talento. Peço-lhe que não duvide dos sentimentos de estima e de admiração que sinto por sua pessoa e sua obra.

Roland Barthes

Carta de Albert Camus a Roland Barthes

Ao Sr. Roland Barthes
Paris

Paris, 11 de janeiro de 1955

Caro Senhor,
por sedutor que me pareça, não posso compartilhar do seu ponto de vista sobre A Peste. Claro está que todo comentário é legítimo na crítica de boa fé; ao mesmo tempo, aventurar-se tão longe quanto o senhor faz é tão permissível quanto relevante. Mas parece-me que em qualquer obra há evidências que o autor tem o direito de mencionar a fim de ao menos indicar os limites em que pode se desdobrar o comentário. Afirmar, por exemplo, que A Peste funda uma moral anti- histórica e uma política da solidão implica, penso eu, cair em contradições e sobretudo deixar de lado certas evidências; resumo aqui as principais:

1º A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência européia contra o nazismo. A prova disso está no fato de que, sem que o inimigo seja nomeado, todo mundo soube reconhecê-lo, e em todos os países da Europa. Acrescentemos que um longo trecho d'A Peste foi publicado sob a Ocupação num volume de combate e que essa circunstância bastaria por si só para justificar a transposição que adotei. Em certo sentido, A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso.

2º Comparada a O Estrangeiro, A Peste marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação.

3º O tema da separação (cuja importância no livro o senhor percebeu muito bem) é esclarecedor quanto a este ponto. Rambert, que incarna o tema, renuncia justamente à vida privada para se juntar ao combate coletivo. Entre parênteses:
este personagem bastaria para mostrar o que pode haver de factício na oposição entre o amigo e o militante. Pois uma virtude é comum aos dois: a fraternidade ativa, que afinal de contas nenhuma história jamais pode dispensar.

4º Além disso, A Peste termina com o anúncio e a aceitação das lutas vindouras. Ela é um testemunho "do que houve que fazer e que sem dúvida [os homens" deveriam ainda fazer contra o terror e sua arma incansável, a despeito de seus conflitos pessoais...". Eu poderia estender ainda mais meu ponto de vista. Mas se me parece bem possível considerar insuficiente a moral em ação n'A Peste (seria então o caso de dizer em nome de qual moral mais completa) ou igualmente legítimo criticar sua estética (muitas das suas observações esclarecem-se pelo fato de eu não acreditar no realismo em arte), parece-me ao contrário bastante difícil afirmar, como faz o senhor à guisa de conclusão, que o autor recusa a solidariedade com a nossa história presente. Difícil e, permita-me dizê-lo com amizade, um pouco entristecedor.

Seja como for, a questão que o senhor propõe ("Que fariam os combatentes d'A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?") é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta - positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições - pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos.

É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história, se não sob condição de declarar que a única maneira de entrar na história está na legitimação de uma tirania. Sei que não é esse o seu caso; quanto a mim, levo minha perversidade ao ponto de pensar que resignar-se a uma tal idéia significa na realidade aceitar a solidão humana. E longe de me sentir preso a um carreira de solidão, tenho ao contrário a sensação de viver para e por uma comunidade que até agora nada na história foi capaz de minar. É isto, muito sucintamente, o que desejava dizer-lhe. Para concluir, gostaria tão-somente de assegurar-lhe que esta discussão amistosa não diminui em nada a estima que tenho por seu talento e por sua pessoa.

Albert Camus


(enviada por Carlos Gama)

Camus - Do Primeiro Homem

Victor Malan dirá no Primeiro Homem:

Há em mim um vazio terrível, uma indiferença que me faz mal”. (p. 38).

Uma página antes Henri Cormery, outro dos personagens do livro, por sinal o principal, tinha afirmado:

Tenho vergonha da minha indiferença”


(enviado por Carlos Gama)

JPP - Dois caminhos

Nestes dias de dois caminhos, às vezes penso que devia deixar Camus a outrem. Gosto de Camus porque escreve sobre a culpa sem culpa, contrariamente a quase tudo que se faz e diz hoje, que construímos um mundo impregnado pela culpa. (O Mystic River, para usar um exemplo contemporâneo, retrata isso mesmo, um mundo mergulhado em culpa, no que não se fez e devia fazer, no que nos aconteceu e a culpa é nossa, na culpa dos outros que também é nossa, como se um pecado universal de omissão fizesse parte da comunidade dos homens, ou o pecado original nos conduzisse a um mundo sem salvação. O nosso destino é sentir culpa. Muito judeu, muito católico-americano, muito americano pós-guerra civil, muito Nova Iorquino das classes altas, muito Woody Allen, sem o humor e sem a mãe judia.).

Camus é demasiado dos nossos dias. O seu absurdo é quotidiano, está também inscrito no modo como se vê tudo hoje. A descrença preparou o mundo para a “existência”, para esse mundo angustiado da permanente medida com o que nos falta. De novo, Camus faz a diferença com o culto da alegria, com uma sensibilidade que quase é nietzschiana sem a confiança dos golpes de martelo de Zaratustra. Mas tudo medido, talvez me deva voltar para outro lado.

A mim interessam-me as formas de sensibilidade arcaicas, alheias, antigas, não este mundo pegajoso da culpa, ou o ar cinzento do absurdo. Devia dedicar-me a outros escritos que nos são tão alheios como Plutão. Como, por exemplo, os desse homem tão terrível como Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo para os cristãos. Era sobre ele que devia abrir um blogue.

Camus - Do Estrangeiro 4

No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.


(enviado por cgama)

Camus - Do Estrangeiro 3

Á noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar com ela. Disse que tanto fazia, mas que, se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.

— Nesse caso, por que casar-se comigo? — perguntou ela.

Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nos poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.

— Não — respondi.

Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou.
Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher, com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.

— Naturalmente — respondi.

Perguntou então a si própria se me amava, mas eu, eu nada podia saber sobre isso. Depois de outro instante de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos eu a decepcionaria. Como ficasse calado, nada tendo a acrescentar, tomou-me do braço sorrindo, e declarou que queria casar comigo.
Respondi que sim, desde que ela quisesse.


(enviado por cgama)

Camus - Do Estrangeiro 2

Ontem foi sábado e, como havíamos combinado, encontrei-me com Marie. Desejei-a intensamente, porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava um aspecto de flor. Pegamos um ônibus e fomos para uma praia, a alguns quilômetros de Argel, espremida entre rochedos e margeada de canas. O sol das 4 horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Marie ensinou-me uma brincadeira. Ao nadar, era preciso beber na crista das ondas, acumular toda a espuma na boca, e em seguida, virar de costas para projetá-la contra o céu. Isto produzia uma espécie de renda espumante, que desaparecia no ar ou, como uma chuva morna, me caía no rosto.
Mas, depois de algum tempo, sentia o ardor do sal queimar a boca. Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos por instantes nas ondas.


(enviado por cgama)

Camus - Do Estrangeiro

Custei a levantar-me, pois estava cansado do dia de ontem. Enquanto fazia a barba, perguntei-me o que iria fazer e decidi tomar um banho de mar. Peguei um bonde para ir ao centro de lazer do porto. Uma vez lá mergulhei no canal. Havia muitos jovens. Na água, encontrei a Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara na época. Ela também, creio eu. Mas foi embora pouco depois e não tivemos tempo. Ajudei-a a subir numa bóia e, neste movimento, rocei os seus seios. Eu estava ainda na água, quando ela já se deitara na bóia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caíam-lhe nos olhos e sorria. Ergui-me até ficar ao seu lado. O tempo estava bom, e de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás, e encostei-na sua barriga. Não reclamou, e eu fiquei assim. Tinha o céu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado.
Debaixo da nuca sentia o copo de Marie palpitar suavemente. Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol ficou forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nada-os juntos.
Ela continuava a rir. No cais, enquanto nos secávamos, disse-me:

— Estou mais morena do que Você.

Perguntei-lhe se queria ir ao cinema de noite. Riu de novo e disse que estava com vontade de ver um filme de Fernandel. Depois de nos vestirmos, ficou muito surpresa de me ver com uma gravata preta, e perguntou-me se estava de luto.
Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como quisesse saber há quanto tempo,
respondi:

— Morreu ontem.

Hesitou um pouco, mas não fez nenhum comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me, porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.

À noite, Marie esquecera tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios. No fim da sessão, eu a beijei, mas mal. Ao sair, veio para minha casa.
Quando acordei, Marie tinha ido embora. Explicara-me que precisava ir visitar uma tia. Lembrei-me de que era domingo, e isso me irritou: não gosto dos domingos. Então, vire-me na cama, busquei no travesseiro o cheiro de sal que os cabelos de Marie tinham deixado e dormi até as 10 horas.


(enviado por cgama)

25/01/2004

18

Il les exécutait de sa propre main : “II faut, disait-il, payer de sa personne.”

(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

17

Pour rester un homme dans le monde d'aujourd'hui, il ne faut pas seulement une énergie sans défaillance et une tension ininterrompue, il faut encore un peu de chance.

(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 2

Em sequência dos meus sublinhados da primeira leitura de juventude dos Cadernos aqui deixo os excertos que mereceram a minha admiração no Caderno nº 2 (22 de Setembro de 1937/Abril de 1939). Assinalo que Camus ingressou no Partido Comunista Argelino em 1934, no mesmo ano do seu casamento com Simone Hié. Entre 1934 e 1937 conclui a licenciatura em Filosofia, separa-se de Simone Hié e, em 1937, é expulso (ou abandona voluntariamente) o Partido Comunista. Este breve apontamento biográfico serve para chamar a atenção para o facto de, por vezes, num futuro aprofundamento deste projecto, ser necessário acompanhar a “acção” com a biografia pois não foi por acaso que Camus adoptou a designação de “Cadernos” e não de “Diário”. Camus tinha uma verdadeira aversão a retratar a sua vida pessoal não existindo nos Cadernos quase nenhumas referências directas às suas vivências pessoais. Mas elas estão lá em abundantes referências indirectas e aos seus projectos de trabalho.
Eis os meus sublinhados neste Caderno nº2 que, por sinal, são escassos.

Huxley.”No fim de contas, vale mais ser um burguês igual aos outros que um mau boémio ou um falso aristocrata, ou que um intelectual de segunda ordem…”

(Deveria eu ter acabado de ler “O Admirável Mundo Novo” e uma enorme emoção resultou dessa leitura.)

Aquele que ama neste mundo e aquela que o ama com a certeza de se lhe juntar na eternidade. Os seus amores não estão no mesmo plano.”

“O parzinho no comboio. Ambos feios. Ela agarra-se a ele, ri, excitada, seduzindo-o. Ele, de olhar sombrio, sente-se embaraçado por ser amado diante de toda a gente por uma mulher da qual não se orgulha.”

“A Argélia, país a um tempo medido e desmedido. Medido nas suas linhas, desmedido na sua luz.”

“Aquela manhã cheia de sol. As ruas quentes e cheias de mulheres. Vendem-se flores a todas as esquinas das ruas. E esses rostos de raparigas que sorriem.”

(Esta frase, com outras que constam neste Caderno, e que não sublinhei, manteve-se muito viva na minha memória pois despertou, e desperta, as mais fortes ressonâncias afectivas da minha infância, no campo, e na pequena cidade de Faro, na distante província que era o Algarve rural dos anos 50.)

Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº2 ( Setembro de 1937/ Abril de 1939).

Camus - Do Mito de Sisífo

Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe.

(CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, transcrito de Sebenta )

24/01/2004

Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus

Não há qualquer dúvida acerca da edição portuguesa da “Livros do Brasil” ao contrário do que um participante deste projecto parece fazer crer. Por outro lado a “Breve Nota Prefacial”, de António Quadros, inserta nos Cadernos II, com todo o respeito, não acrescenta nada de essencial ao trabalho de Camus, nem ao actual projecto de “Blog-Cadernos de Camus” que tem como objecto essencial, ao que me parece, o próprio Camus e a sua “aventura” de criador de um blog “avant la lettre”. Anoto que cada volume da edição portuguesa é traduzido por uma personalidade diferente: Gina de Freitas, António Quadros e…António Ramos Rosa.

O meu segundo contributo, na fase experimental do blog, é a transcrição do conjunto das frases sublinhadas, no próprio livro, aquando da minha primeira leitura. As restantes foram transcritas na anterior participação. Desta forma “invento” um critério para esta série de excertos do 1º caderno (Maio de 1935 a 15 de Setembro de 1937).

Abril.
Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se perdem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas, mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.


(Nesta página escrevi à mão em frente a Abril: “3-1968-Faro-Cais”. O ambiente da Argélia natal de Camus tem algo a ver com o ambiente de Faro, a minha cidade natal. Devia ser o período das Férias de Páscoa. Curiosamente nas vésperas do “Maio de 68”)

Os sentidos e o mundo – Os desejos confundem-se. E neste corpo que aperto contra o meu, aperto também essa alegria estranha que vem do céu em direcção ao mar”

“Perna partida do carregador. A um canto, um homem novo que ri silenciosamente.”

“Maio.
Estes fins de tarde em Argel em que as mulheres são tão belas.”

“Intelectual? Sim. E nunca renegar. Intelectual=aquele que se desdobra. Isto agrada-me. Sinto-me contente por ser ambos. “Se isto se adapta?” Questão prática. É preciso meter mãos à obra. “Eu desprezo a inteligência” significa na realidade: “não posso suportar as minhas dúvidas”. Prefiro manter os olhos abertos.”

“Fevereiro.
A civilização não reside num grau mais ou menos elevado de requinte. Mas numa consciência comum a todo um povo. E essa consciência nunca é requintada. Ela é mesmo completamente sincera. Fazer da civilização a obra de uma elite, é identificá-la à altura, que é uma coisa diferente. Há uma cultura mediterrânea. Pelo contrário, não confundir civilização e povo.”
(Fevereiro de 1936)

“Narrativa – o homem que não se quer justificar. A ideia que se faz dele é a preferida. Ele morre, único a guardar consciência da sua verdade. Futilidade dessa consolação.”

(Uma nota de pé de página assinala: “Tema de L´Etranger.”)

Maio.
Erro de uma psicologia de pormenor. Os homens que se procuram, que se analisam. Para nos conhecermos bem, temos que nos afirmar. A psicologia é acção – não reflexão sobre si próprio. Definimo-nos ao longo da vida. Conhecermo-nos perfeitamente, é morrer.”

“Os casais: o homem tenta brilhar diante de terceiros. A mulher imediatamente: “Mas tu também…”, e tenta diminui-lo, torná-lo solidário da sua mediocridade.”

“Mulheres na rua. A besta arrebatada do desejo que trazemos enroscada na cavidade dos rins e que se agita com uma suavidade estranha
.”


Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937).


13

La liberté sexuelle nous a apporté au moins ceci que la chasteté et la supériorité de la volonté sont maintenant possibles. Toutes les experiences, les femmes retenues ou libres, ardentes ou réveuses, et soi-même déchainé ou circonspect, triomphant ou incapable de desir, le tour est fait. Il n'y a plus de mystère ni de refoulement. La liberté de l'esprit est alors presque complete la maîtrise presque toujours possible.

(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

12

Les Anciens et les Classiques féminisaient la nature. On y entrait. Nos peintres la virilisent. Elle entre dans nos yeux, jusqu'â les déchirer.

(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

11 - 30 de Abril de 1958

30 avril. [1958]
Martin du Gard. Nice. Il se traîne avec son rhumatisme articulaire. 77 ans. “Devant la mort rien ne tient plus, non pas même mon oeuvre. Il n'y a rien, rien...” “Oui c'est bon
de ne pas se sentir seul “ (et ses yeux se remplissent de larmes). Nous prenons rendez-vous pour juillet au Tertre “Si je suis en vie. “ Mais toujours ce méme coeur s'intéressant a tout.


(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

10

Maman. Si l'on aimait assez ceux qu'on aime, on les empêcherait de mourir.

(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)

23/01/2004

9 - Timshel - Desilusão

1. Verifico agora que a edição que possuo da "Livros do Brasil" chamada Primeiros Cadernos tem, para além dos três primeiros Cadernos (até à página 193) também os Cadernos 4, 5 e 6 (termina em 7 de Março de 1951) num livro que perfaz 461 páginas.

2. Estive agora a reler algumas partes deste livro. Foi uma desilusão. Foi como ouvir uma canção que amei muito e que agora já não me faz vibrar. Compreende-se a beleza mas ela já não toca. A quase totalidade daquilo que reli já pouco me disse.

3. No prefácio de António Quadros descubro algumas citações interessantes de Camus embora com uma sensação de déjà vu:

- "O comunismo é uma sequência lógica do cristianismo. É uma história de cristãos."

- "Não há outra objecção à atitude totalitária senão a objecção religiosa ou moral (...) Pertence-nos a nós criar Deus."

Só que já não gosto do estilo nem da formulação. Seriam interessantes como textos de base para desenvolvimento mas...

4. A minha contribuição para o blogue de Camus. Ao relê-la lembrei-me o quanto gostei dela há vinte e tal anos atrás e porquê; mas é pessoal, algo que se viveu e que só tem interesse para quem viveu esses momentos. Por isso vai sem comentários.

8

"Quinta-feira, 9. (de Setembro de 1937)

As nuvens avolumam-se por cima do claustro e a noite pouco a pouco encobre as lajes onde está inscrita a moral com que se dota aqueles que morreram. Se eu escrevesse aqui um livro de moral, teria cem páginas e noventa e nove estariam em branco. Na última, escreveria: "Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar." E, quanto ao resto, digo não. Digo não com todas as minhas forças. As lajes dizem-me que é inútil e que a vida é como "col sol levante, col sol cadente". Mas não vejo o que a inutilidade retira à minha revolta e sinto muito bem o que a faz aumentar.

Pensava em tudo isto sentado no chão, encostado a uma coluna, e algumas crianças riam e brincavam. Um padre sorriu-me. Mulheres olhavam-me com curiosidade. Na igreja, o órgão tocava surdamente e o colorido quente dos seus contornos surgia por vezes atrás dos risos das crianças. A morte! A continuar assim, acabarei por morrer feliz. Terei consumido toda a minha esperança."


(enviado por timshel )

7

Sur l'échafaud, madame du Berry : "Encore un minute. monsieur le bourreau".

(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)

[A frase completa parece ter sido "Encore un moment, monsieur le bourreau, un petit moment." Para que queria a du Barry o "petit moment" ? Ou será que na hora da morte mesmo um minuto é bem vindo? (JPP)]

6

Le vent, une des rares choses propres du monde.

(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)

5

Les collines au-dessus de Mers-el-Kébir comme un paysage parfait.

(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)


4 - Eduardo Graça, Cadernos de Camus

Releio o Caderno nº 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) e anoto os meus sublinhados vigorosos, aquando da primeira leitura, na segunda metade dos anos 60. Achei que nesta primeira abordagem não os devia ignorar. Eis o meu primeiro sublinhado:

Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.
Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o seu autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça.”


Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a fazer esta escolha mas seria capaz, hoje, de sublinhar de novo com acrescidas razões.

Com respeito às escolhas de JPP é curioso que os meus sublinhados de juventude se situam imediatamente antes e depois das citações escolhidas por JPP. Sublinhei a frase imediatamente anterior à citação de JPP com o título “A civilização contra a cultura”, ou seja,

As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira.

E ainda mais extraordinário a coincidência de ter sublinhado as citações imediatamente anterior e posterior daquela outra que JPP escolheu com o título: “Poder consolador do inferno”, quais sejam:

Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não “depois”, “antes”.”

E esta outra:

Regra lógica. O singular tem valor de universal.
-ilógica: o trágico é contraditório.
-prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros.


As minhas escolhas de juventude podiam ser as minhas escolhas actuais. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão em que Camus olha a natureza e os outros com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final deste Caderno nº 1 quando escreve:

“…Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!...

Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, incluindo: Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), Caderno nº2 (Setembro de 1937 a Abril de 1939) e Caderno nº3 (Abril de 1939 a Fevereiro de 1942).

(Eduardo Graça)

22/01/2004

3

Etre profond par insincerité.

[A discutir: a mentira é da natureza do humano. Aliás a mentira é por sua natureza profundamente social. Nenhuma sociedade sobreviveria sem a mentira, porque a mentira protege. Mas os homens estão cada vez mais a permitir a generalização de tecnologias da “verdade”, sem perceber a disrupção que elas provocam. Telemóveis com GPS, com câmaras que filmam em tempo real. Continua a ser possível mentir com todos esses mecanismos, mas torna-se tecnologicamente mais difícil. Haverá excluídos da mentira, prisioneiros da verdade, com uma vida social mais pobre? (JPP)]

2

Pouvoir consolant de 1'Enfer.

1) D'une part, souffrance sans fins, n'a pas de sens pour nous - Nous imaginons des répits.

2) Nous ne sommes pas sensibles au mot éternité. Inappreciable pour nous. Sinon dans la
mesure où nous parlons de “seconde éternelle “.

3) L'enfer, c'est la vie avec ce corps – qui vaut encore mieux que l'anéantissement.


1


La civilisation contre la culture.
Impérialisme est civilisation pure. Cf. Cecil Rhodes. “ L'expansion est tout “ - les civilisations sont des ilots - La civilisation comme aboutissement fatal de la culture (Cf. Spengler).
Culture : cri des hommes devant leur destin.
Civilisation, sa décadence : désir de l'homme devant les richesses. Aveuglement.
D'une theorie politique sur la Méditerranée.
“ Je parle de ce que je connais.”



[Hannah Arendt refere-se a esta frase "Expansion is everything" e ao desespero de Rhodes com a sua vontade do todo: "these stars... these vast worlds which we can never reach. I would annex the planets if I could". Para uma análise desta frase por Arendt veja-se aqui. (JPP)]