Albert Camus - A Queda - Sublinhados # 1
1.
"Ser senhor dos seus humores é o privilégio dos grandes animais" - p.14
2.
"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções." - p. 15
3.
"Os holandeses, oh!, são muito menos modernos! Têm tempo, repare neles. Que fazem? Ora bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. São, de resto, machos e fémeas, umas burguesíssimas criaturas que têm o costume de vir aqui, por mitomania ou estupidez. Em suma, por excesso ou falta de imaginação. De tempos a tempos, estes senhores puxam pela faca ou pelo revólver, mas não julgue que com muito empenho. O papel exige, eis tudo, e morrem de medo, disparando os últimos cartuchos. Posto o que, acho ainda mais moralidade neles que nos outros, aqueles que matam em família, pelo desgaste. Não notou ainda que a nossa sociedade está organizada neste género de liquidação? Já ouviu falar, naturalmente, daqueles minúsculos peixes dos cursos de água brasileiros que se lançam aos milhares sobre o nadador imprudente e o limpam, em alguns instantes, a pequenas bocadas rápidas, não deixando mais que um esqueleto imaculado? Pois bem, é essa a organização deles. «Quer uma vida limpa? Como toda a gente?» Dirá que sim, naturalmente. Como dizer que não? «De acordo. Vai ficar limpinho. Aqui tem um emprego, uma família, lazeres organizados.» E os dentes minúsculos cravam-se na carne até aos ossos. Mas sou injusto. Não é a organização deles que se deve dizer. Ela é a nossa, ao fim e ao cabo: é a ver quem limpará o próximo." - pp. 18-20.
4.
“(…) era advogado, antes de vir para aqui. Agora, sou juiz-penitente.
Mas dê-me licença que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, um seu criado. Muito gosto em conhecê-lo. Nos negócios, não é verdade? Mais ou menos? Excelente resposta! E judiciosa também; nós não estamos senão mais ou menos em todas as coisas.” – p.21
5.
“Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” - p. 24 [link possível para Cartas a Um Amigo Alemão aqui]
6. (Jean-Baptiste explica o advogado que era:)
6. 1.
“Eu tinha o coração nas mangas. Era mesmo de crer que a justiça dormisse comigo todas as noites” – p. 36
6. 2.
“(…) eu ganhava a vida dialogando com pessoas que desprezava.
Mas, enfim, estava do bom lado, isso bastava para a paz da minha consciência. O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios, são, caro senhor, molas poderosas para nos suster de pé ou nos fazer avançar.” – p. 37
6. 3.
“O meu mérito era nulo: a avidez, que na nossa sociedade faz as vestes da ambição, sempre me fez rir. Eu visava mais alto; verá como a expressão é exacta, no que me diz respeito.” [sublinhado 6.7.] – p. 39
6. 4.
“arrancava o cego a qualquer solicitude e conduzia-o com mão leve e firme sobre a faixa de passagem, entre os obstáculos do trânsito, até à angra tranquila do passeio onde nos separávamos com mútua emoção.” – p. 40
6. 5.
“Um grande cristão meu amigo reconhecia que o primeiro sentimento que experimentamos, ao ver um mendigo abeirar-se da nossa casa, é de desagrado. Pois bem, comigo era pior: eu exultava.” – p. 41
6. 6.
“Rejubilava até, devo dizê-lo, com os dias em que, devido à greve dos transportes públicos, eu tinha ocasião de meter no meu automóvel, alguns dos meus infelizes concidadãos, impossibilitados de voltar para casa.” – p. 42
6. 7.
“Ser detido, por exemplo, nos corredores do Tribunal pela mulher de um réu que defendêramos unicamente por justiça ou piedade, quero dizer gratuitamente, ouvir esta mulher murmurar que nada, nada poderá pagar o que se fez por eles, responder então que era natural, outro qualquer teria feito o mesmo, oferecer até uma ajuda para as dificuldades dos dias mais próximos, depois, finalmente, a fim de pôr termo às efusões e conservar-lhes assim uma justa ressonância, beijar a mão dessa pobre mulher e acabar com aquilo, acredite, meu caro senhor, é subir mais alto do que a ambição vulgar e içar-se ao ponto culminante onde a virtude já não se sustenta senão de si própria." - p.44
6.8.
“Nunca me senti à vontade senão nas situações elevadas. Até nos pormenores da vida eu tinha necessidade de estar por cima. Preferia o autocarro ao metropolitano, as caleças aos táxis, os terraços às sobrelojas. (…) Os paióis, os porões, os subterrâneos, as grutas, os abismos, causavam-me horror. Ganhara mesmo um ódio especial aos espeleólogos (…)” – p. 45
(continua 6.9. - p.46)
27/01/2004
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 3
Os meus sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos salta, por razões que não sou capaz de explicar, para o Caderno nº5. A edição portuguesa dos “Livros do Brasil” (Colecção Miniatura), apresenta uma configuração diferente da francesa, das Edition Gallimard, como é explicado no volume intitulado Cadernos III: “Por motivos de ordem técnica, Carnets II foi dividido, na edição portuguesa, em dois volumes: Cadernos II (já publicado nesta colecção sob o número 162) e Cadernos III, que é o presente volume”. Os extractos do Caderno 5 a que se seguem constam, pois, dos Cadernos III que dizem respeito ao período Setembro de1945/Abril de 1948.
Estes extractos são, por vezes, mais longos do que nas anteriores incursões por este registo de leitura o que se deve ao facto de terem sido leituras posteriores a Abril de 68, provavelmente de 69/70, no período da crise académica na qual participei activamente.
“O ar de pobres diabos que têm as pessoas nas salas de espera dos médicos”.
“Conversações com Koestler. O fim não justifica os meios senão quando a ordem de grandeza recíproca for razoável. Posso mandar Saint-Exupéry em missão mortal para salvar um regimento. Mas não posso deportar milhões de pessoas e suprimir toda a liberdade por um resultado quantitativo equivalente e estipular previamente o sacrifício de três ou quatro gerações.
- O génio: Não existe.
- A grande miséria do criador começa quando se lhe reconhece talento (Já não tenho coragem de publicar os meus livros).”
“1947
Como todos os fracos, as suas decisões eram brutais e de uma firmeza insensata”.
“Que vale o homem? Que é o homem? Depois de tudo o que vi, enquanto eu viver, hei-de ficar sempre com uma desconfiança e uma inquietação fundamental a seu respeito.”
“Terrorismo.
A grande pureza do terrorista estilo Kalyaev, é que para ele o homicídio coincide com o suicídio (cf. Savinkov: Recordações de um terrorista). Uma vida paga-se com outra vida. O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida ceifada não vale uma vida dada.) Hoje o homicídio por procuração. Ninguém paga.
1905 Kaliayiev: o sacrifício do corpo. 1930: o sacrifício do espirito.”
“Que é impossível, a respeito de quem quer que seja, dizer que é absolutamente culpado e, por conseguinte, impossível pronunciar um castigo total.”
“25 de Junho de 1947
Tristeza do êxito. A adversidade é necessária. Se tudo me fosse mais difícil, como dantes, teria mais direito a dizer o que digo. O que vale é que posso ajudar muitas pessoas – entretanto.”
(No ano de 1947 Camus abandona a redacção do jornal Combat e publica o romance A Peste que o torna célebre o que, sem dúvida, explica esta reflexão acerca do êxito. Nos meus sublinhados verifico a curiosidade de ter colocado entre aspas a frase “A adversidade é necessária”. Um sublinhado do sublinhado).
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 ( Setembro de 1945/ Abril de 1948).
Estes extractos são, por vezes, mais longos do que nas anteriores incursões por este registo de leitura o que se deve ao facto de terem sido leituras posteriores a Abril de 68, provavelmente de 69/70, no período da crise académica na qual participei activamente.
“O ar de pobres diabos que têm as pessoas nas salas de espera dos médicos”.
“Conversações com Koestler. O fim não justifica os meios senão quando a ordem de grandeza recíproca for razoável. Posso mandar Saint-Exupéry em missão mortal para salvar um regimento. Mas não posso deportar milhões de pessoas e suprimir toda a liberdade por um resultado quantitativo equivalente e estipular previamente o sacrifício de três ou quatro gerações.
- O génio: Não existe.
- A grande miséria do criador começa quando se lhe reconhece talento (Já não tenho coragem de publicar os meus livros).”
“1947
Como todos os fracos, as suas decisões eram brutais e de uma firmeza insensata”.
“Que vale o homem? Que é o homem? Depois de tudo o que vi, enquanto eu viver, hei-de ficar sempre com uma desconfiança e uma inquietação fundamental a seu respeito.”
“Terrorismo.
A grande pureza do terrorista estilo Kalyaev, é que para ele o homicídio coincide com o suicídio (cf. Savinkov: Recordações de um terrorista). Uma vida paga-se com outra vida. O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida ceifada não vale uma vida dada.) Hoje o homicídio por procuração. Ninguém paga.
1905 Kaliayiev: o sacrifício do corpo. 1930: o sacrifício do espirito.”
“Que é impossível, a respeito de quem quer que seja, dizer que é absolutamente culpado e, por conseguinte, impossível pronunciar um castigo total.”
“25 de Junho de 1947
Tristeza do êxito. A adversidade é necessária. Se tudo me fosse mais difícil, como dantes, teria mais direito a dizer o que digo. O que vale é que posso ajudar muitas pessoas – entretanto.”
(No ano de 1947 Camus abandona a redacção do jornal Combat e publica o romance A Peste que o torna célebre o que, sem dúvida, explica esta reflexão acerca do êxito. Nos meus sublinhados verifico a curiosidade de ter colocado entre aspas a frase “A adversidade é necessária”. Um sublinhado do sublinhado).
Extractos, in Cadernos (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº5 ( Setembro de 1945/ Abril de 1948).
26/01/2004
Resposta de Roland Barthes a Camus
Ao sr. Albert Camus
Librairie Gallimard Rue Sébastien-Bottin Paris, 7º distrito
Paris, 4 de fevereiro de 1955
Caro senhor,
agradeço-lhe as observações que o senhor teve a bondade de fazer a propósito de minha resenha d'``A Peste''. Elas não me demovem de meu ponto de vista, mas de qualquer modo permitem-me situar melhor o debate que nos opôs.
Penso que concordaríamos em resumir este debate da seguinte maneira: o romancista tem o direito de alienar os fatos da história? Poderá uma peste equivaler, não digo a uma ocupação, mas à Ocupação?
Todo o seu livro, a epígrafe que o senhor inseriu, suas próprias explicações reivindicam esse direito, que precisamente se confunde, aos seus olhos, com a rejeição do realismo em arte -no qual o senhor lembra não acreditar.
Ora, no que me diz respeito, eu creio nele; ou ao menos (pois o termo ``realismo'' tem uma hereditariedade bastante pesada) creio numa arte literal em que as pestes não são outra coisa além de pestes, em que a Resistência é a resistência integral.
Vejo nessa arte literal o único recurso possível contra uma moral formal (própria, creio eu, a distrair-nos da ``teimosia dos fatos''), única forma de respeito possível frente à História, cujos males só são remediáveis se os encaramos em sua literalidade absoluta, e não como símbolos ou germes possíveis de uma equivalência.
O senhor me pede que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral d'``A Peste''. Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais completa que uma moral da expressão. Eu o teria declarado antes, se não temesse parecer demasiado pretensioso ao me filiar a um método que exige tanto de seus partidários.
Portanto, o que procurei contestar foi um sistema, não uma pessoa ou um talento. Peço-lhe que não duvide dos sentimentos de estima e de admiração que sinto por sua pessoa e sua obra.
Roland Barthes
Librairie Gallimard Rue Sébastien-Bottin Paris, 7º distrito
Paris, 4 de fevereiro de 1955
Caro senhor,
agradeço-lhe as observações que o senhor teve a bondade de fazer a propósito de minha resenha d'``A Peste''. Elas não me demovem de meu ponto de vista, mas de qualquer modo permitem-me situar melhor o debate que nos opôs.
Penso que concordaríamos em resumir este debate da seguinte maneira: o romancista tem o direito de alienar os fatos da história? Poderá uma peste equivaler, não digo a uma ocupação, mas à Ocupação?
Todo o seu livro, a epígrafe que o senhor inseriu, suas próprias explicações reivindicam esse direito, que precisamente se confunde, aos seus olhos, com a rejeição do realismo em arte -no qual o senhor lembra não acreditar.
Ora, no que me diz respeito, eu creio nele; ou ao menos (pois o termo ``realismo'' tem uma hereditariedade bastante pesada) creio numa arte literal em que as pestes não são outra coisa além de pestes, em que a Resistência é a resistência integral.
Vejo nessa arte literal o único recurso possível contra uma moral formal (própria, creio eu, a distrair-nos da ``teimosia dos fatos''), única forma de respeito possível frente à História, cujos males só são remediáveis se os encaramos em sua literalidade absoluta, e não como símbolos ou germes possíveis de uma equivalência.
O senhor me pede que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral d'``A Peste''. Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais completa que uma moral da expressão. Eu o teria declarado antes, se não temesse parecer demasiado pretensioso ao me filiar a um método que exige tanto de seus partidários.
Portanto, o que procurei contestar foi um sistema, não uma pessoa ou um talento. Peço-lhe que não duvide dos sentimentos de estima e de admiração que sinto por sua pessoa e sua obra.
Roland Barthes
Carta de Albert Camus a Roland Barthes
Ao Sr. Roland Barthes
Paris
Paris, 11 de janeiro de 1955
Caro Senhor,
por sedutor que me pareça, não posso compartilhar do seu ponto de vista sobre A Peste. Claro está que todo comentário é legítimo na crítica de boa fé; ao mesmo tempo, aventurar-se tão longe quanto o senhor faz é tão permissível quanto relevante. Mas parece-me que em qualquer obra há evidências que o autor tem o direito de mencionar a fim de ao menos indicar os limites em que pode se desdobrar o comentário. Afirmar, por exemplo, que A Peste funda uma moral anti- histórica e uma política da solidão implica, penso eu, cair em contradições e sobretudo deixar de lado certas evidências; resumo aqui as principais:
1º A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência européia contra o nazismo. A prova disso está no fato de que, sem que o inimigo seja nomeado, todo mundo soube reconhecê-lo, e em todos os países da Europa. Acrescentemos que um longo trecho d'A Peste foi publicado sob a Ocupação num volume de combate e que essa circunstância bastaria por si só para justificar a transposição que adotei. Em certo sentido, A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso.
2º Comparada a O Estrangeiro, A Peste marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação.
3º O tema da separação (cuja importância no livro o senhor percebeu muito bem) é esclarecedor quanto a este ponto. Rambert, que incarna o tema, renuncia justamente à vida privada para se juntar ao combate coletivo. Entre parênteses:
este personagem bastaria para mostrar o que pode haver de factício na oposição entre o amigo e o militante. Pois uma virtude é comum aos dois: a fraternidade ativa, que afinal de contas nenhuma história jamais pode dispensar.
4º Além disso, A Peste termina com o anúncio e a aceitação das lutas vindouras. Ela é um testemunho "do que houve que fazer e que sem dúvida [os homens" deveriam ainda fazer contra o terror e sua arma incansável, a despeito de seus conflitos pessoais...". Eu poderia estender ainda mais meu ponto de vista. Mas se me parece bem possível considerar insuficiente a moral em ação n'A Peste (seria então o caso de dizer em nome de qual moral mais completa) ou igualmente legítimo criticar sua estética (muitas das suas observações esclarecem-se pelo fato de eu não acreditar no realismo em arte), parece-me ao contrário bastante difícil afirmar, como faz o senhor à guisa de conclusão, que o autor recusa a solidariedade com a nossa história presente. Difícil e, permita-me dizê-lo com amizade, um pouco entristecedor.
Seja como for, a questão que o senhor propõe ("Que fariam os combatentes d'A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?") é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta - positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições - pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos.
É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história, se não sob condição de declarar que a única maneira de entrar na história está na legitimação de uma tirania. Sei que não é esse o seu caso; quanto a mim, levo minha perversidade ao ponto de pensar que resignar-se a uma tal idéia significa na realidade aceitar a solidão humana. E longe de me sentir preso a um carreira de solidão, tenho ao contrário a sensação de viver para e por uma comunidade que até agora nada na história foi capaz de minar. É isto, muito sucintamente, o que desejava dizer-lhe. Para concluir, gostaria tão-somente de assegurar-lhe que esta discussão amistosa não diminui em nada a estima que tenho por seu talento e por sua pessoa.
Albert Camus
(enviada por Carlos Gama)
Paris
Paris, 11 de janeiro de 1955
Caro Senhor,
por sedutor que me pareça, não posso compartilhar do seu ponto de vista sobre A Peste. Claro está que todo comentário é legítimo na crítica de boa fé; ao mesmo tempo, aventurar-se tão longe quanto o senhor faz é tão permissível quanto relevante. Mas parece-me que em qualquer obra há evidências que o autor tem o direito de mencionar a fim de ao menos indicar os limites em que pode se desdobrar o comentário. Afirmar, por exemplo, que A Peste funda uma moral anti- histórica e uma política da solidão implica, penso eu, cair em contradições e sobretudo deixar de lado certas evidências; resumo aqui as principais:
1º A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência européia contra o nazismo. A prova disso está no fato de que, sem que o inimigo seja nomeado, todo mundo soube reconhecê-lo, e em todos os países da Europa. Acrescentemos que um longo trecho d'A Peste foi publicado sob a Ocupação num volume de combate e que essa circunstância bastaria por si só para justificar a transposição que adotei. Em certo sentido, A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso.
2º Comparada a O Estrangeiro, A Peste marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação.
3º O tema da separação (cuja importância no livro o senhor percebeu muito bem) é esclarecedor quanto a este ponto. Rambert, que incarna o tema, renuncia justamente à vida privada para se juntar ao combate coletivo. Entre parênteses:
este personagem bastaria para mostrar o que pode haver de factício na oposição entre o amigo e o militante. Pois uma virtude é comum aos dois: a fraternidade ativa, que afinal de contas nenhuma história jamais pode dispensar.
4º Além disso, A Peste termina com o anúncio e a aceitação das lutas vindouras. Ela é um testemunho "do que houve que fazer e que sem dúvida [os homens" deveriam ainda fazer contra o terror e sua arma incansável, a despeito de seus conflitos pessoais...". Eu poderia estender ainda mais meu ponto de vista. Mas se me parece bem possível considerar insuficiente a moral em ação n'A Peste (seria então o caso de dizer em nome de qual moral mais completa) ou igualmente legítimo criticar sua estética (muitas das suas observações esclarecem-se pelo fato de eu não acreditar no realismo em arte), parece-me ao contrário bastante difícil afirmar, como faz o senhor à guisa de conclusão, que o autor recusa a solidariedade com a nossa história presente. Difícil e, permita-me dizê-lo com amizade, um pouco entristecedor.
Seja como for, a questão que o senhor propõe ("Que fariam os combatentes d'A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?") é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta - positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições - pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos.
É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história, se não sob condição de declarar que a única maneira de entrar na história está na legitimação de uma tirania. Sei que não é esse o seu caso; quanto a mim, levo minha perversidade ao ponto de pensar que resignar-se a uma tal idéia significa na realidade aceitar a solidão humana. E longe de me sentir preso a um carreira de solidão, tenho ao contrário a sensação de viver para e por uma comunidade que até agora nada na história foi capaz de minar. É isto, muito sucintamente, o que desejava dizer-lhe. Para concluir, gostaria tão-somente de assegurar-lhe que esta discussão amistosa não diminui em nada a estima que tenho por seu talento e por sua pessoa.
Albert Camus
(enviada por Carlos Gama)
Camus - Do Primeiro Homem
Victor Malan dirá no Primeiro Homem:
“Há em mim um vazio terrível, uma indiferença que me faz mal”. (p. 38).
Uma página antes Henri Cormery, outro dos personagens do livro, por sinal o principal, tinha afirmado:
“Tenho vergonha da minha indiferença”
(enviado por Carlos Gama)
“Há em mim um vazio terrível, uma indiferença que me faz mal”. (p. 38).
Uma página antes Henri Cormery, outro dos personagens do livro, por sinal o principal, tinha afirmado:
“Tenho vergonha da minha indiferença”
(enviado por Carlos Gama)
JPP - Dois caminhos
Nestes dias de dois caminhos, às vezes penso que devia deixar Camus a outrem. Gosto de Camus porque escreve sobre a culpa sem culpa, contrariamente a quase tudo que se faz e diz hoje, que construímos um mundo impregnado pela culpa. (O Mystic River, para usar um exemplo contemporâneo, retrata isso mesmo, um mundo mergulhado em culpa, no que não se fez e devia fazer, no que nos aconteceu e a culpa é nossa, na culpa dos outros que também é nossa, como se um pecado universal de omissão fizesse parte da comunidade dos homens, ou o pecado original nos conduzisse a um mundo sem salvação. O nosso destino é sentir culpa. Muito judeu, muito católico-americano, muito americano pós-guerra civil, muito Nova Iorquino das classes altas, muito Woody Allen, sem o humor e sem a mãe judia.).
Camus é demasiado dos nossos dias. O seu absurdo é quotidiano, está também inscrito no modo como se vê tudo hoje. A descrença preparou o mundo para a “existência”, para esse mundo angustiado da permanente medida com o que nos falta. De novo, Camus faz a diferença com o culto da alegria, com uma sensibilidade que quase é nietzschiana sem a confiança dos golpes de martelo de Zaratustra. Mas tudo medido, talvez me deva voltar para outro lado.
A mim interessam-me as formas de sensibilidade arcaicas, alheias, antigas, não este mundo pegajoso da culpa, ou o ar cinzento do absurdo. Devia dedicar-me a outros escritos que nos são tão alheios como Plutão. Como, por exemplo, os desse homem tão terrível como Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo para os cristãos. Era sobre ele que devia abrir um blogue.
Camus é demasiado dos nossos dias. O seu absurdo é quotidiano, está também inscrito no modo como se vê tudo hoje. A descrença preparou o mundo para a “existência”, para esse mundo angustiado da permanente medida com o que nos falta. De novo, Camus faz a diferença com o culto da alegria, com uma sensibilidade que quase é nietzschiana sem a confiança dos golpes de martelo de Zaratustra. Mas tudo medido, talvez me deva voltar para outro lado.
A mim interessam-me as formas de sensibilidade arcaicas, alheias, antigas, não este mundo pegajoso da culpa, ou o ar cinzento do absurdo. Devia dedicar-me a outros escritos que nos são tão alheios como Plutão. Como, por exemplo, os desse homem tão terrível como Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo para os cristãos. Era sobre ele que devia abrir um blogue.
Camus - Do Estrangeiro 4
No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.
(enviado por cgama)
(enviado por cgama)
Camus - Do Estrangeiro 3
Á noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar com ela. Disse que tanto fazia, mas que, se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.
— Nesse caso, por que casar-se comigo? — perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nos poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
— Não — respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou.
Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher, com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.
— Naturalmente — respondi.
Perguntou então a si própria se me amava, mas eu, eu nada podia saber sobre isso. Depois de outro instante de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos eu a decepcionaria. Como ficasse calado, nada tendo a acrescentar, tomou-me do braço sorrindo, e declarou que queria casar comigo.
Respondi que sim, desde que ela quisesse.
(enviado por cgama)
— Nesse caso, por que casar-se comigo? — perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nos poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
— Não — respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou.
Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher, com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.
— Naturalmente — respondi.
Perguntou então a si própria se me amava, mas eu, eu nada podia saber sobre isso. Depois de outro instante de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos eu a decepcionaria. Como ficasse calado, nada tendo a acrescentar, tomou-me do braço sorrindo, e declarou que queria casar comigo.
Respondi que sim, desde que ela quisesse.
(enviado por cgama)
Camus - Do Estrangeiro 2
Ontem foi sábado e, como havíamos combinado, encontrei-me com Marie. Desejei-a intensamente, porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava um aspecto de flor. Pegamos um ônibus e fomos para uma praia, a alguns quilômetros de Argel, espremida entre rochedos e margeada de canas. O sol das 4 horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Marie ensinou-me uma brincadeira. Ao nadar, era preciso beber na crista das ondas, acumular toda a espuma na boca, e em seguida, virar de costas para projetá-la contra o céu. Isto produzia uma espécie de renda espumante, que desaparecia no ar ou, como uma chuva morna, me caía no rosto.
Mas, depois de algum tempo, sentia o ardor do sal queimar a boca. Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos por instantes nas ondas.
(enviado por cgama)
Mas, depois de algum tempo, sentia o ardor do sal queimar a boca. Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos por instantes nas ondas.
(enviado por cgama)
Camus - Do Estrangeiro
Custei a levantar-me, pois estava cansado do dia de ontem. Enquanto fazia a barba, perguntei-me o que iria fazer e decidi tomar um banho de mar. Peguei um bonde para ir ao centro de lazer do porto. Uma vez lá mergulhei no canal. Havia muitos jovens. Na água, encontrei a Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara na época. Ela também, creio eu. Mas foi embora pouco depois e não tivemos tempo. Ajudei-a a subir numa bóia e, neste movimento, rocei os seus seios. Eu estava ainda na água, quando ela já se deitara na bóia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caíam-lhe nos olhos e sorria. Ergui-me até ficar ao seu lado. O tempo estava bom, e de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás, e encostei-na sua barriga. Não reclamou, e eu fiquei assim. Tinha o céu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado.
Debaixo da nuca sentia o copo de Marie palpitar suavemente. Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol ficou forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nada-os juntos.
Ela continuava a rir. No cais, enquanto nos secávamos, disse-me:
— Estou mais morena do que Você.
Perguntei-lhe se queria ir ao cinema de noite. Riu de novo e disse que estava com vontade de ver um filme de Fernandel. Depois de nos vestirmos, ficou muito surpresa de me ver com uma gravata preta, e perguntou-me se estava de luto.
Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como quisesse saber há quanto tempo,
respondi:
— Morreu ontem.
Hesitou um pouco, mas não fez nenhum comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me, porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.
À noite, Marie esquecera tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios. No fim da sessão, eu a beijei, mas mal. Ao sair, veio para minha casa.
Quando acordei, Marie tinha ido embora. Explicara-me que precisava ir visitar uma tia. Lembrei-me de que era domingo, e isso me irritou: não gosto dos domingos. Então, vire-me na cama, busquei no travesseiro o cheiro de sal que os cabelos de Marie tinham deixado e dormi até as 10 horas.
(enviado por cgama)
Debaixo da nuca sentia o copo de Marie palpitar suavemente. Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol ficou forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nada-os juntos.
Ela continuava a rir. No cais, enquanto nos secávamos, disse-me:
— Estou mais morena do que Você.
Perguntei-lhe se queria ir ao cinema de noite. Riu de novo e disse que estava com vontade de ver um filme de Fernandel. Depois de nos vestirmos, ficou muito surpresa de me ver com uma gravata preta, e perguntou-me se estava de luto.
Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como quisesse saber há quanto tempo,
respondi:
— Morreu ontem.
Hesitou um pouco, mas não fez nenhum comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me, porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.
À noite, Marie esquecera tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios. No fim da sessão, eu a beijei, mas mal. Ao sair, veio para minha casa.
Quando acordei, Marie tinha ido embora. Explicara-me que precisava ir visitar uma tia. Lembrei-me de que era domingo, e isso me irritou: não gosto dos domingos. Então, vire-me na cama, busquei no travesseiro o cheiro de sal que os cabelos de Marie tinham deixado e dormi até as 10 horas.
(enviado por cgama)
25/01/2004
18
Il les exécutait de sa propre main : “II faut, disait-il, payer de sa personne.”
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
17
Pour rester un homme dans le monde d'aujourd'hui, il ne faut pas seulement une énergie sans défaillance et une tension ininterrompue, il faut encore un peu de chance.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus 2
Em sequência dos meus sublinhados da primeira leitura de juventude dos Cadernos aqui deixo os excertos que mereceram a minha admiração no Caderno nº 2 (22 de Setembro de 1937/Abril de 1939). Assinalo que Camus ingressou no Partido Comunista Argelino em 1934, no mesmo ano do seu casamento com Simone Hié. Entre 1934 e 1937 conclui a licenciatura em Filosofia, separa-se de Simone Hié e, em 1937, é expulso (ou abandona voluntariamente) o Partido Comunista. Este breve apontamento biográfico serve para chamar a atenção para o facto de, por vezes, num futuro aprofundamento deste projecto, ser necessário acompanhar a “acção” com a biografia pois não foi por acaso que Camus adoptou a designação de “Cadernos” e não de “Diário”. Camus tinha uma verdadeira aversão a retratar a sua vida pessoal não existindo nos Cadernos quase nenhumas referências directas às suas vivências pessoais. Mas elas estão lá em abundantes referências indirectas e aos seus projectos de trabalho.
Eis os meus sublinhados neste Caderno nº2 que, por sinal, são escassos.
“Huxley.”No fim de contas, vale mais ser um burguês igual aos outros que um mau boémio ou um falso aristocrata, ou que um intelectual de segunda ordem…””
(Deveria eu ter acabado de ler “O Admirável Mundo Novo” e uma enorme emoção resultou dessa leitura.)
“Aquele que ama neste mundo e aquela que o ama com a certeza de se lhe juntar na eternidade. Os seus amores não estão no mesmo plano.”
“O parzinho no comboio. Ambos feios. Ela agarra-se a ele, ri, excitada, seduzindo-o. Ele, de olhar sombrio, sente-se embaraçado por ser amado diante de toda a gente por uma mulher da qual não se orgulha.”
“A Argélia, país a um tempo medido e desmedido. Medido nas suas linhas, desmedido na sua luz.”
“Aquela manhã cheia de sol. As ruas quentes e cheias de mulheres. Vendem-se flores a todas as esquinas das ruas. E esses rostos de raparigas que sorriem.”
(Esta frase, com outras que constam neste Caderno, e que não sublinhei, manteve-se muito viva na minha memória pois despertou, e desperta, as mais fortes ressonâncias afectivas da minha infância, no campo, e na pequena cidade de Faro, na distante província que era o Algarve rural dos anos 50.)
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº2 ( Setembro de 1937/ Abril de 1939).
Eis os meus sublinhados neste Caderno nº2 que, por sinal, são escassos.
“Huxley.”No fim de contas, vale mais ser um burguês igual aos outros que um mau boémio ou um falso aristocrata, ou que um intelectual de segunda ordem…””
(Deveria eu ter acabado de ler “O Admirável Mundo Novo” e uma enorme emoção resultou dessa leitura.)
“Aquele que ama neste mundo e aquela que o ama com a certeza de se lhe juntar na eternidade. Os seus amores não estão no mesmo plano.”
“O parzinho no comboio. Ambos feios. Ela agarra-se a ele, ri, excitada, seduzindo-o. Ele, de olhar sombrio, sente-se embaraçado por ser amado diante de toda a gente por uma mulher da qual não se orgulha.”
“A Argélia, país a um tempo medido e desmedido. Medido nas suas linhas, desmedido na sua luz.”
“Aquela manhã cheia de sol. As ruas quentes e cheias de mulheres. Vendem-se flores a todas as esquinas das ruas. E esses rostos de raparigas que sorriem.”
(Esta frase, com outras que constam neste Caderno, e que não sublinhei, manteve-se muito viva na minha memória pois despertou, e desperta, as mais fortes ressonâncias afectivas da minha infância, no campo, e na pequena cidade de Faro, na distante província que era o Algarve rural dos anos 50.)
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº2 ( Setembro de 1937/ Abril de 1939).
Camus - Do Mito de Sisífo
Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe.
(CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, transcrito de Sebenta )
(CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, transcrito de Sebenta )
24/01/2004
Eduardo Graça - Leituras dos Cadernos de Camus
Não há qualquer dúvida acerca da edição portuguesa da “Livros do Brasil” ao contrário do que um participante deste projecto parece fazer crer. Por outro lado a “Breve Nota Prefacial”, de António Quadros, inserta nos Cadernos II, com todo o respeito, não acrescenta nada de essencial ao trabalho de Camus, nem ao actual projecto de “Blog-Cadernos de Camus” que tem como objecto essencial, ao que me parece, o próprio Camus e a sua “aventura” de criador de um blog “avant la lettre”. Anoto que cada volume da edição portuguesa é traduzido por uma personalidade diferente: Gina de Freitas, António Quadros e…António Ramos Rosa.
O meu segundo contributo, na fase experimental do blog, é a transcrição do conjunto das frases sublinhadas, no próprio livro, aquando da minha primeira leitura. As restantes foram transcritas na anterior participação. Desta forma “invento” um critério para esta série de excertos do 1º caderno (Maio de 1935 a 15 de Setembro de 1937).
“Abril.
Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se perdem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas, mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.
(Nesta página escrevi à mão em frente a Abril: “3-1968-Faro-Cais”. O ambiente da Argélia natal de Camus tem algo a ver com o ambiente de Faro, a minha cidade natal. Devia ser o período das Férias de Páscoa. Curiosamente nas vésperas do “Maio de 68”)
“Os sentidos e o mundo – Os desejos confundem-se. E neste corpo que aperto contra o meu, aperto também essa alegria estranha que vem do céu em direcção ao mar”
“Perna partida do carregador. A um canto, um homem novo que ri silenciosamente.”
“Maio.
Estes fins de tarde em Argel em que as mulheres são tão belas.”
“Intelectual? Sim. E nunca renegar. Intelectual=aquele que se desdobra. Isto agrada-me. Sinto-me contente por ser ambos. “Se isto se adapta?” Questão prática. É preciso meter mãos à obra. “Eu desprezo a inteligência” significa na realidade: “não posso suportar as minhas dúvidas”. Prefiro manter os olhos abertos.”
“Fevereiro.
A civilização não reside num grau mais ou menos elevado de requinte. Mas numa consciência comum a todo um povo. E essa consciência nunca é requintada. Ela é mesmo completamente sincera. Fazer da civilização a obra de uma elite, é identificá-la à altura, que é uma coisa diferente. Há uma cultura mediterrânea. Pelo contrário, não confundir civilização e povo.”
(Fevereiro de 1936)
“Narrativa – o homem que não se quer justificar. A ideia que se faz dele é a preferida. Ele morre, único a guardar consciência da sua verdade. Futilidade dessa consolação.”
(Uma nota de pé de página assinala: “Tema de L´Etranger.”)
“Maio.
Erro de uma psicologia de pormenor. Os homens que se procuram, que se analisam. Para nos conhecermos bem, temos que nos afirmar. A psicologia é acção – não reflexão sobre si próprio. Definimo-nos ao longo da vida. Conhecermo-nos perfeitamente, é morrer.”
“Os casais: o homem tenta brilhar diante de terceiros. A mulher imediatamente: “Mas tu também…”, e tenta diminui-lo, torná-lo solidário da sua mediocridade.”
“Mulheres na rua. A besta arrebatada do desejo que trazemos enroscada na cavidade dos rins e que se agita com uma suavidade estranha.”
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937).
O meu segundo contributo, na fase experimental do blog, é a transcrição do conjunto das frases sublinhadas, no próprio livro, aquando da minha primeira leitura. As restantes foram transcritas na anterior participação. Desta forma “invento” um critério para esta série de excertos do 1º caderno (Maio de 1935 a 15 de Setembro de 1937).
“Abril.
Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se perdem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas, mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.
(Nesta página escrevi à mão em frente a Abril: “3-1968-Faro-Cais”. O ambiente da Argélia natal de Camus tem algo a ver com o ambiente de Faro, a minha cidade natal. Devia ser o período das Férias de Páscoa. Curiosamente nas vésperas do “Maio de 68”)
“Os sentidos e o mundo – Os desejos confundem-se. E neste corpo que aperto contra o meu, aperto também essa alegria estranha que vem do céu em direcção ao mar”
“Perna partida do carregador. A um canto, um homem novo que ri silenciosamente.”
“Maio.
Estes fins de tarde em Argel em que as mulheres são tão belas.”
“Intelectual? Sim. E nunca renegar. Intelectual=aquele que se desdobra. Isto agrada-me. Sinto-me contente por ser ambos. “Se isto se adapta?” Questão prática. É preciso meter mãos à obra. “Eu desprezo a inteligência” significa na realidade: “não posso suportar as minhas dúvidas”. Prefiro manter os olhos abertos.”
“Fevereiro.
A civilização não reside num grau mais ou menos elevado de requinte. Mas numa consciência comum a todo um povo. E essa consciência nunca é requintada. Ela é mesmo completamente sincera. Fazer da civilização a obra de uma elite, é identificá-la à altura, que é uma coisa diferente. Há uma cultura mediterrânea. Pelo contrário, não confundir civilização e povo.”
(Fevereiro de 1936)
“Narrativa – o homem que não se quer justificar. A ideia que se faz dele é a preferida. Ele morre, único a guardar consciência da sua verdade. Futilidade dessa consolação.”
(Uma nota de pé de página assinala: “Tema de L´Etranger.”)
“Maio.
Erro de uma psicologia de pormenor. Os homens que se procuram, que se analisam. Para nos conhecermos bem, temos que nos afirmar. A psicologia é acção – não reflexão sobre si próprio. Definimo-nos ao longo da vida. Conhecermo-nos perfeitamente, é morrer.”
“Os casais: o homem tenta brilhar diante de terceiros. A mulher imediatamente: “Mas tu também…”, e tenta diminui-lo, torná-lo solidário da sua mediocridade.”
“Mulheres na rua. A besta arrebatada do desejo que trazemos enroscada na cavidade dos rins e que se agita com uma suavidade estranha.”
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937).
13
La liberté sexuelle nous a apporté au moins ceci que la chasteté et la supériorité de la volonté sont maintenant possibles. Toutes les experiences, les femmes retenues ou libres, ardentes ou réveuses, et soi-même déchainé ou circonspect, triomphant ou incapable de desir, le tour est fait. Il n'y a plus de mystère ni de refoulement. La liberté de l'esprit est alors presque complete la maîtrise presque toujours possible.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
12
Les Anciens et les Classiques féminisaient la nature. On y entrait. Nos peintres la virilisent. Elle entre dans nos yeux, jusqu'â les déchirer.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
11 - 30 de Abril de 1958
30 avril. [1958]
Martin du Gard. Nice. Il se traîne avec son rhumatisme articulaire. 77 ans. “Devant la mort rien ne tient plus, non pas même mon oeuvre. Il n'y a rien, rien...” “Oui c'est bon
de ne pas se sentir seul “ (et ses yeux se remplissent de larmes). Nous prenons rendez-vous pour juillet au Tertre “Si je suis en vie. “ Mais toujours ce méme coeur s'intéressant a tout.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
Martin du Gard. Nice. Il se traîne avec son rhumatisme articulaire. 77 ans. “Devant la mort rien ne tient plus, non pas même mon oeuvre. Il n'y a rien, rien...” “Oui c'est bon
de ne pas se sentir seul “ (et ses yeux se remplissent de larmes). Nous prenons rendez-vous pour juillet au Tertre “Si je suis en vie. “ Mais toujours ce méme coeur s'intéressant a tout.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
10
Maman. Si l'on aimait assez ceux qu'on aime, on les empêcherait de mourir.
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
(Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
23/01/2004
9 - Timshel - Desilusão
1. Verifico agora que a edição que possuo da "Livros do Brasil" chamada Primeiros Cadernos tem, para além dos três primeiros Cadernos (até à página 193) também os Cadernos 4, 5 e 6 (termina em 7 de Março de 1951) num livro que perfaz 461 páginas.
2. Estive agora a reler algumas partes deste livro. Foi uma desilusão. Foi como ouvir uma canção que amei muito e que agora já não me faz vibrar. Compreende-se a beleza mas ela já não toca. A quase totalidade daquilo que reli já pouco me disse.
3. No prefácio de António Quadros descubro algumas citações interessantes de Camus embora com uma sensação de déjà vu:
- "O comunismo é uma sequência lógica do cristianismo. É uma história de cristãos."
- "Não há outra objecção à atitude totalitária senão a objecção religiosa ou moral (...) Pertence-nos a nós criar Deus."
Só que já não gosto do estilo nem da formulação. Seriam interessantes como textos de base para desenvolvimento mas...
4. A minha contribuição para o blogue de Camus. Ao relê-la lembrei-me o quanto gostei dela há vinte e tal anos atrás e porquê; mas é pessoal, algo que se viveu e que só tem interesse para quem viveu esses momentos. Por isso vai sem comentários.
2. Estive agora a reler algumas partes deste livro. Foi uma desilusão. Foi como ouvir uma canção que amei muito e que agora já não me faz vibrar. Compreende-se a beleza mas ela já não toca. A quase totalidade daquilo que reli já pouco me disse.
3. No prefácio de António Quadros descubro algumas citações interessantes de Camus embora com uma sensação de déjà vu:
- "O comunismo é uma sequência lógica do cristianismo. É uma história de cristãos."
- "Não há outra objecção à atitude totalitária senão a objecção religiosa ou moral (...) Pertence-nos a nós criar Deus."
Só que já não gosto do estilo nem da formulação. Seriam interessantes como textos de base para desenvolvimento mas...
4. A minha contribuição para o blogue de Camus. Ao relê-la lembrei-me o quanto gostei dela há vinte e tal anos atrás e porquê; mas é pessoal, algo que se viveu e que só tem interesse para quem viveu esses momentos. Por isso vai sem comentários.
8
"Quinta-feira, 9. (de Setembro de 1937)
As nuvens avolumam-se por cima do claustro e a noite pouco a pouco encobre as lajes onde está inscrita a moral com que se dota aqueles que morreram. Se eu escrevesse aqui um livro de moral, teria cem páginas e noventa e nove estariam em branco. Na última, escreveria: "Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar." E, quanto ao resto, digo não. Digo não com todas as minhas forças. As lajes dizem-me que é inútil e que a vida é como "col sol levante, col sol cadente". Mas não vejo o que a inutilidade retira à minha revolta e sinto muito bem o que a faz aumentar.
Pensava em tudo isto sentado no chão, encostado a uma coluna, e algumas crianças riam e brincavam. Um padre sorriu-me. Mulheres olhavam-me com curiosidade. Na igreja, o órgão tocava surdamente e o colorido quente dos seus contornos surgia por vezes atrás dos risos das crianças. A morte! A continuar assim, acabarei por morrer feliz. Terei consumido toda a minha esperança."
(enviado por timshel )
As nuvens avolumam-se por cima do claustro e a noite pouco a pouco encobre as lajes onde está inscrita a moral com que se dota aqueles que morreram. Se eu escrevesse aqui um livro de moral, teria cem páginas e noventa e nove estariam em branco. Na última, escreveria: "Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar." E, quanto ao resto, digo não. Digo não com todas as minhas forças. As lajes dizem-me que é inútil e que a vida é como "col sol levante, col sol cadente". Mas não vejo o que a inutilidade retira à minha revolta e sinto muito bem o que a faz aumentar.
Pensava em tudo isto sentado no chão, encostado a uma coluna, e algumas crianças riam e brincavam. Um padre sorriu-me. Mulheres olhavam-me com curiosidade. Na igreja, o órgão tocava surdamente e o colorido quente dos seus contornos surgia por vezes atrás dos risos das crianças. A morte! A continuar assim, acabarei por morrer feliz. Terei consumido toda a minha esperança."
(enviado por timshel )
7
Sur l'échafaud, madame du Berry : "Encore un minute. monsieur le bourreau".
(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)
[A frase completa parece ter sido "Encore un moment, monsieur le bourreau, un petit moment." Para que queria a du Barry o "petit moment" ? Ou será que na hora da morte mesmo um minuto é bem vindo? (JPP)]
(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)
[A frase completa parece ter sido "Encore un moment, monsieur le bourreau, un petit moment." Para que queria a du Barry o "petit moment" ? Ou será que na hora da morte mesmo um minuto é bem vindo? (JPP)]
5
Les collines au-dessus de Mers-el-Kébir comme un paysage parfait.
(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)
(Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942)
4 - Eduardo Graça, Cadernos de Camus
Releio o Caderno nº 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) e anoto os meus sublinhados vigorosos, aquando da primeira leitura, na segunda metade dos anos 60. Achei que nesta primeira abordagem não os devia ignorar. Eis o meu primeiro sublinhado:
“Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.
Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o seu autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça.”
Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a fazer esta escolha mas seria capaz, hoje, de sublinhar de novo com acrescidas razões.
Com respeito às escolhas de JPP é curioso que os meus sublinhados de juventude se situam imediatamente antes e depois das citações escolhidas por JPP. Sublinhei a frase imediatamente anterior à citação de JPP com o título “A civilização contra a cultura”, ou seja,
“As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira.”
E ainda mais extraordinário a coincidência de ter sublinhado as citações imediatamente anterior e posterior daquela outra que JPP escolheu com o título: “Poder consolador do inferno”, quais sejam:
“Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não “depois”, “antes”.”
E esta outra:
“Regra lógica. O singular tem valor de universal.
-ilógica: o trágico é contraditório.
-prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros.”
As minhas escolhas de juventude podiam ser as minhas escolhas actuais. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão em que Camus olha a natureza e os outros com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final deste Caderno nº 1 quando escreve:
“…Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!...”
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, incluindo: Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), Caderno nº2 (Setembro de 1937 a Abril de 1939) e Caderno nº3 (Abril de 1939 a Fevereiro de 1942).
(Eduardo Graça)
“Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.
Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o seu autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça.”
Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a fazer esta escolha mas seria capaz, hoje, de sublinhar de novo com acrescidas razões.
Com respeito às escolhas de JPP é curioso que os meus sublinhados de juventude se situam imediatamente antes e depois das citações escolhidas por JPP. Sublinhei a frase imediatamente anterior à citação de JPP com o título “A civilização contra a cultura”, ou seja,
“As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira.”
E ainda mais extraordinário a coincidência de ter sublinhado as citações imediatamente anterior e posterior daquela outra que JPP escolheu com o título: “Poder consolador do inferno”, quais sejam:
“Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não “depois”, “antes”.”
E esta outra:
“Regra lógica. O singular tem valor de universal.
-ilógica: o trágico é contraditório.
-prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros.”
As minhas escolhas de juventude podiam ser as minhas escolhas actuais. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão em que Camus olha a natureza e os outros com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final deste Caderno nº 1 quando escreve:
“…Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!...”
Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, incluindo: Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), Caderno nº2 (Setembro de 1937 a Abril de 1939) e Caderno nº3 (Abril de 1939 a Fevereiro de 1942).
(Eduardo Graça)
22/01/2004
3
Etre profond par insincerité.
[A discutir: a mentira é da natureza do humano. Aliás a mentira é por sua natureza profundamente social. Nenhuma sociedade sobreviveria sem a mentira, porque a mentira protege. Mas os homens estão cada vez mais a permitir a generalização de tecnologias da “verdade”, sem perceber a disrupção que elas provocam. Telemóveis com GPS, com câmaras que filmam em tempo real. Continua a ser possível mentir com todos esses mecanismos, mas torna-se tecnologicamente mais difícil. Haverá excluídos da mentira, prisioneiros da verdade, com uma vida social mais pobre? (JPP)]
[A discutir: a mentira é da natureza do humano. Aliás a mentira é por sua natureza profundamente social. Nenhuma sociedade sobreviveria sem a mentira, porque a mentira protege. Mas os homens estão cada vez mais a permitir a generalização de tecnologias da “verdade”, sem perceber a disrupção que elas provocam. Telemóveis com GPS, com câmaras que filmam em tempo real. Continua a ser possível mentir com todos esses mecanismos, mas torna-se tecnologicamente mais difícil. Haverá excluídos da mentira, prisioneiros da verdade, com uma vida social mais pobre? (JPP)]
2
Pouvoir consolant de 1'Enfer.
1) D'une part, souffrance sans fins, n'a pas de sens pour nous - Nous imaginons des répits.
2) Nous ne sommes pas sensibles au mot éternité. Inappreciable pour nous. Sinon dans la
mesure où nous parlons de “seconde éternelle “.
3) L'enfer, c'est la vie avec ce corps – qui vaut encore mieux que l'anéantissement.
1) D'une part, souffrance sans fins, n'a pas de sens pour nous - Nous imaginons des répits.
2) Nous ne sommes pas sensibles au mot éternité. Inappreciable pour nous. Sinon dans la
mesure où nous parlons de “seconde éternelle “.
3) L'enfer, c'est la vie avec ce corps – qui vaut encore mieux que l'anéantissement.
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La civilisation contre la culture.
Impérialisme est civilisation pure. Cf. Cecil Rhodes. “ L'expansion est tout “ - les civilisations sont des ilots - La civilisation comme aboutissement fatal de la culture (Cf. Spengler).
Culture : cri des hommes devant leur destin.
Civilisation, sa décadence : désir de l'homme devant les richesses. Aveuglement.
D'une theorie politique sur la Méditerranée.
“ Je parle de ce que je connais.”
[Hannah Arendt refere-se a esta frase "Expansion is everything" e ao desespero de Rhodes com a sua vontade do todo: "these stars... these vast worlds which we can never reach. I would annex the planets if I could". Para uma análise desta frase por Arendt veja-se aqui. (JPP)]
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